*por Raphael Vidigal
“Só o cinismo redime um casamento. É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de prata” Nelson Rodrigues
Sangue e adultério. Uma morte suspeita. Duas mulheres, da mesma família, disputam o mesmo homem. As notícias tomam as manchetes dos jornais, em frases sensacionalistas e alarmantes. E o público não desgruda os olhos do palco. “Vestido de Noiva” foi encenada pela primeira vez há quase um século, em 1943. Decorridos 80 anos, a montagem do polonês Ziembinski para a peça que consagrou Nelson Rodrigues continua se constituindo como um paradigma. Ione de Medeiros não se intimidou com o desafio.
Em 2018, a renomada diretora teatral iniciou com o Grupo Oficcina Multimédia, que ela ajudou a fundar em 1977, os estudos sobre a obra de Nelson Rodrigues, que desembocou na apresentação de “Boca de Ouro”. “Vestido de Noiva”, em cartaz até o dia 26 de junho em Belo Horizonte, adicionou novos ingredientes à empreitada. A narrativa se passa em três dimensões psicológicas, que precisam encontrar o seu correspondente no plano da elaboração cênica: realidade, alucinação e memória.
“O público não precisa fazer esforço para entender, é um texto direto, coloquial, que gera grande identificação e atrai com uma história aparentemente comum, que vemos todos os dias nos jornais. O fato de o Nelson Rodrigues, com a sua competência de dramaturgo, tratar esses temas através do inconsciente é que traz a sofisticação e a novidade na maneira de contar a história. E isso é o teatro que faz”, constata Ione.
Enredo. Alaíde é atropelada por um veículo em alta velocidade. Na maca do hospital, sob a luz fria e asséptica da sala de cirurgia, recorda a briga com a irmã Lúcia, de quem seduziu indecorosamente o namorado Pedro. Em seus delírios, ela se depara com a prostituta Madame Clessi, assassinada por um namorado possessivo e enciumado.
“Como os clássicos da literatura e da dramaturgia, esse texto do Nelson Rodrigues permanece atual porque fala sobre as essências da natureza humana. Por exemplo, o desejo da mulher de encontrar um outro espaço que não seja somente o da família e do lar. A hipocrisia das famílias que priorizam as aparências e ignoram os problemas mais próximos e humanos de seus filhos. A necessidade da reconstrução de identidade de todo mundo. O ser humano precisa estar em constante movimento, procurando quem ele é, o que ele está fazendo. A peça toca em todas essas questões. Por isso, é atemporal”, sustenta a diretora.
O espírito de vanguarda está na gênese do Oficcina Multimédia, que sempre prezou pela intersecção de linguagens, em um movimento amplo que atualizava com um novo vigor os clássicos. “Cheguei a usar projetor de slide quando não tinha projetor de vídeo. Gosto dessa dimensão em que você amplia a imagem, a personagem, o cenário. É um uso da tecnologia que se encaixa na proposta do grupo”, destaca. No espetáculo anterior, “Boca de Ouro”, ela optou por uma abordagem intimista. Não foi o caso de “Vestido de Noiva”.
Caminhos. A dança, o texto, o vídeo, a multiplicidade de linguagens se integraram a uma sinopse fragmentada, que parte de uma narradora em estado de inconsciência. “Não há uma lógica que você acompanha cronologicamente, e a tecnologia foi fundamental para dar esse suporte narrativo e cênico”, afiança. Com um núcleo de dois atores que trabalham com ela há mais de duas décadas, Ione realizou a sua habitual peregrinação para formar o elenco de seis integrantes, que se revezam entre os papéis femininos e masculinos, outra tradição da companhia, em um saudável hibridismo.
“Assisto a muitos espetáculos, vou pela identificação e recebo indicações”, conta. Dois atores vieram de São João del-Rey, e outro acabou de se formar pelo Teatro Universitário da UFMG. Camila Felix, atriz e dançarina com longa passagem pelo grupo Primeiro Ato, já a tinha conquistado em “Boca de Ouro”. “Todos têm seus projetos, a sua carreira, e, se não fosse pelo profissionalismo, pela compreensão e o desejo de estarmos juntos nessa montagem complexa, eu não teria conseguido montar esse espetáculo em três meses, com um elenco tão harmonizado”, agradece Ione.
Há 45 anos, ela deu o pontapé nessa caminhada teatral, com deleites e dissabores. “A maior conquista é a continuidade, é você montar uma peça de difícil realização como ‘Vestido de Noiva’, com um elenco ajustado, com energia para manter os ensaios e a coerência da pesquisa. É uma grande vitória poder continuar uma proposta iniciada nos anos 1970, da qual eu fiz parte da criação, e seguir na estrada durante todo esse tempo, com diversos espetáculos montados”, exalta.
História. Ione é contemporânea de “Vestido de Noiva”. Nascida em Juiz de Fora, aos 80 anos ela tem a sua história ligada de maneira sensível e inexorável ao teatro. Sob sua direção, o Oficcina Multimédia deu vazão a textos de García Lorca, Kafka, James Joyce, Gertrude Stein, dentre outros. Pianista de formação, ela sempre esteve imersa nesse ambiente da arte, se interessando também pelo cinema de Godard, Bergman e Buñuel. Como toda vida, a sua também teve que recolher pedras no caminho.
Ione hesita em usar a palavra “dolorida”, mas, depois, aquiesce. “Dolorido é você não ter o reconhecimento devido, do ponto de vista de uma política cultural que possa manter o grupo, o que exige muito de todos nós. Ficamos sujeitos a editais, por não ter ainda um suporte financeiro que garanta essa continuidade com mais tranquilidade”, informa. Nesse cenário, os envolvidos precisam se virar em outras funções para manter a pesquisa dramatúrgica em dia, sem realizar concessões no âmago dos projetos.
“Com a pandemia, todos sofremos. Assistimos a uma verdadeira tragédia, com milhares de mortes, as pessoas passando por inúmeras dificuldades. Os artistas, logicamente, também foram muito atingidos. Vivenciamos o fundo do poço, porque juntar pandemia com (o ex-presidente) Bolsonaro foi uma tragédia”. Após o fim desse pesadelo, com a possibilidade de circular tranquilamente pelas ruas da cidade e retomar o convívio diário com seus entes queridos, a maior felicidade que Ione experimentou, “na história da política brasileira foi a reeleição do presidente Lula”.
Esperança. “Realmente acho que seria uma catástrofe continuar sob um governo que era um desgoverno, que promoveu um assalto à cultura, à arte, à saúde, à educação, enfim, a todos os projetos civilizatórios. Agora é uma esperança. Como se abrisse um horizonte. O governo Lula já está revendo os patrocínios para as áreas de ciência, saúde, educação, cultura. É um prêmio poder retomar a cultura com mais confiança no futuro”, aponta. Segundo a diretora, “a responsabilidade é se dedicar e fazer justiça a esses tempos”.
“É a chance de um governo mais humano, atual, moderno, que está aí para atender às reais necessidades da sociedade”. “Vestido de Noiva” tem perspectiva alvissareira. Cumpre temporada em BH até junho e, logo na sequência, parte em turnê que contempla as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. A recepção do público “tem sido maravilhosa”, nas palavras de Ione. Elas são confirmadas pelo esgotamento em tempo recorde dos ingressos para as apresentações. A fama da obra e a curiosidade despertada, assim como o padrão de montagem estabelecido por Ziembinski são motivos sugeridos por Ione para o sucesso.
“Tem que ter coragem para trazer novas propostas para uma peça que estreou em 1943, e atualizar, em 2023, o sentido cenográfico de uma proposta de montagem que foi muito bem-sucedida na origem”, observa. Essa coragem, evidentemente, não falta a Ione, uma mulher de teatro. “Temos que valorizar a inteligência e a cultura brasileira. Nelson Rodrigues é um autor muito querido pelo público porque fala das nossas urgências e afetividades”, arremata.
Serviço.
O quê. Peça “Vestido de Noiva”, com o Grupo Oficcina Multimédia
Quando. Até 26 de junho, de sexta a segunda, às 19h
Onde. Centro Cultural Banco do Brasil (Praça da Liberdade, 450, Funcionários)
Quanto. De R$15 (meia) a R$30 (inteira), pelo site www.ccbb.com.br ou pela bilheteria do teatro
Foto: Netum Lima/Divulgação.