“Era o fim de uma época, clandestina e rebelde, porém carregada de criatividade, erotismo, lucidez e beleza.” Reinaldo Arenas
Antes de se tornar santa da Igreja Católica, Joana d’Arc (1412-1431) foi queimada na fogueira durante a inquisição promovida pela mesma instituição. Analfabeta e camponesa, a revolucionária francesa inspirou o nome de batismo de Dark. Os pais esperavam que fosse uma menina, mas o rebento nasceu menino e acabou herdando apenas a forma de se dizer o sobrenome da heroína. Anos depois chegava ao mundo o primeiro filho de Dark, hoje conhecido como Marcelo D2, um dos fundadores do Planet Hemp.
É a controversa trajetória da “banda mais perseguida do país” que o jornalista Pedro de Luna, 44, procura contar ao longo das quase 500 páginas de “Planet Hemp: Mantenha o Respeito” (editora Belas-Letras). “Nenhuma banda sentiu tanto na pele a repressão”, sublinha o autor. Dividida em 60 capítulos, a narrativa cronológica traça um perfil de cada integrante antes de entrar na história que eles construíram juntos. Assim, D2, Skunk (1967-1994), Formigão, Rafael Crespo e Bacalhau aos poucos se tornam íntimos do leitor.
Black Alien, que entrou para a banda mais tarde, também ganha um capítulo exclusivo. O rapper BNegão é a ausência sentida nos depoimentos. “Ele não conseguiu espaço na agenda para conceder entrevistas”, lamenta Luna. Todos os demais dão a sua palavra e mostram o seu ponto de vista acerca dos fatos. Luna destaca ainda as conversas com Seu Jorge (que participou das gravações do disco “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça”, lançado em 2000), os produtores Mario Caldato Jr. e Carlos Eduardo Miranda, Fabio Massari, repórter e apresentador do programa “Lado B” na MTV, e Apollo Nove, âncora da emissora, que se tornou tecladista do Planet Hemp.
“Tentei ouvir funcionárias da MTV, mas não tive sucesso. Gostaria de ter ouvido o ponto de vista feminino da história, já que a MTV beijou e bateu na banda ao mesmo tempo”, diz Luna, em referência a músicas de teor machista cantadas pelo grupo no início da carreira, como “Puta Disfarçada”.
1 – O que te atraiu e motivou a escrever uma biografia do Planet Hemp e quando exatamente surgiu essa ideia? Qual foi o seu primeiro contato com a música da banda e como se sentiu naquele momento?
Eu conheço a banda desde os anos 1990, já tínhamos muitos amigos em comum por que eu organizava eventos, editava fanzines e empresariava bandas independentes. Mas o primeiro show marcante foi em março de 1996, em Niterói, que eu gravei em vídeo do palco e cujas imagens permanecem inéditas no meu acervo pessoal. Então posso dizer que sempre me interessei pela banda, mas a ideia de escrever um livro sobre ela foi amadurecendo a partir do meu primeiro, “Niterói Rock Underground 1990-2010”, e outros que vieram na sequência, como o “Brodagens” (2016) e o “coLUNAs” (2017). A biografia “Planet Hemp: Mantenha o Respeito” é o meu nono livro.
2 – De que maneira chegou ao título da biografia e o que essa canção (“Mantenha o Respeito”), revela, na sua opinião, sobre o livro e a trajetória do próprio Planet Hemp?
Acho que o título surgiu naturalmente, já que ele veio na sequência do filme “Legalize Já”, que estreou nos cinemas dia 18 de outubro de 2018, e tanto essa música quanto “Mantenha o Respeito” foram as duas primeiras do Planet Hemp a tocar nas rádios. Nenhuma banda sentiu tanto na pele a repressão como o grupo carioca, a canção saiu no primeiro disco, “Usuário” (1995), e, num trecho, o Marcelo D2 canta: “é tanto preconceito que eu não aguento mais”. Além disso, o título caiu como uma luva num momento de confrontos políticos acirrados, de racismo, homofobia, machismo, militarismo, doutrinação religiosa e retrocesso, com uma onda conservadora, extremista e reacionária varrendo o Brasil e outros países do mundo. Nesse contexto, mais do que nunca manter o respeito às diferenças é fundamental.
3 – Como você concebeu a narrativa do livro? Ela é cronológica ou não? Como distribuiu os capítulos?
Quando estruturei o livro, eu tinha em mente algumas diretrizes, como fazer uma obra de fácil entendimento mesmo para quem não viveu os anos 1990, incluir notas de rodapé e referências para que o texto ficasse bem fluido e didático ao mesmo tempo, contextualizar a banda no tempo e no espaço e ser uma biografia muito interessante mesmo para o leitor que não é um fã do Planet Hemp. A biografia é cronológica e começa nos anos 1980, apresentando cada integrante individualmente, suas histórias pessoais e como era a cena ao seu redor. O Planet Hemp é fruto de uma cena muito rica, que influenciou vários jovens a formarem bandas, produzirem eventos e serem jornalistas nos anos 1990. Então o livro vai contando o passo a passo, encantando o leitor, que se envolve de perto, até chegar na formação da banda, que de certa forma aconteceu por acaso. O grosso do livro vai até a pausa na banda, após o terceiro CD, quando D2, BNegão e Black Alien estavam bem em suas carreiras solo e o grupo ficou para escanteio. Dali em diante a biografia mostra o que aconteceu com os integrantes nesses quase dez anos de hibernação, até a retomada gradual do Planet Hemp com apresentações pontuais, chegando aos dias de hoje.
4 – Quem você procurou ouvir para o livro e quais depoimentos não foram possíveis colher? Há algum depoimento em especial que você destaque?
Foram dezenas de entrevistas, algumas presenciais, outras por e-mail e poucas por WhatsApp, como o Seu Jorge e o produtor Mario Caldato Jr, que moram nos Estados Unidos. Tenho tudo registrado em áudio, vídeo ou texto. Entrevistei todos os integrantes e ex-integrantes, com exceção do BNegão, que não conseguiu espaço na agenda. Todos os depoimentos foram fantásticos. Eu destacaria a entrevista com o produtor Carlos Eduardo Miranda, que queria levar o Planet Hemp para o selo Banguela. Nos encontramos em novembro de 2017 num restaurante em São Paulo e pouco depois, em março de 2018, infelizmente ele faleceu. Talvez tenha sido a sua última entrevista em vida, vai saber. Tentei entrevistar funcionárias da MTV, mas não tive sucesso. Gostaria de ter ouvido o ponto de vista feminino da história, já que a MTV bateu e beijou a banda ao mesmo tempo. Por outro lado, entrevistei o Fabio Massari, repórter e apresentador do programa Lado B, e o Apollo Nove, que trabalhou na emissora e depois virou tecladista do Planet Hemp. Então, no fim das contas, todas as entrevistas foram mais que suficientes para se fazer um grande livro.
5 – Essa biografia traz algo de novo ou inédito para os fãs que acompanham a banda? Qual é, na sua opinião, o grande fato ou a maior revelação contida na publicação?
Com certeza! Mesmo os maiores fãs irão se surpreender com as histórias de bastidores, as perseguições, as brigas internas, as viagens e tantas outras revelações contadas por quem estava lá, sejam os músicos, produtores, fãs, jornalistas e a equipe técnica, que muitas vezes é esquecida pelos biógrafos. Não existe “o grande fato”, acho que um dos méritos da biografia é mostrar como uma banda de rock pôde ser tão perseguida, chegando a ser presa, simplesmente por defender a legalização da maconha e a liberdade de expressão. Passados 25 anos desde o primeiro show do Planet Hemp, o próprio leitor irá concluir que tivemos importantes avanços nesses aspectos, mas também regredimos ou estacionamos em outros. São 496 páginas de muitas histórias e informações, e fico feliz por que até agora o livro só recebeu elogios.
6 – Que importância teve e tem o Planet Hemp para a história da música brasileira e qual foi a marca ou diferencial que ela cravou? O que acha que se perdeu e o que permanece nesse retorno da banda aos palcos tantos anos depois?
Quanto à importância, além de defender a legalização da maconha e a liberdade de expressão, o Planet Hemp denunciava as mazelas da sociedade brasileira, como a repressão ao pobre, a farra dos políticos e o contraste social no Rio de Janeiro. Infelizmente, esses temas contidos em suas letras continuam atuais. Veja aí a crise política nacional, o desemprego, os casos de violência no país e a situação de calamidade pública em que o Rio se encontra. Do ponto de vista estético, além de fundir rock e hip hop, o Planet Hemp inovou ao trazer dois vocalistas sem instrumentos pendurados no pescoço, em alguns momentos, que considero incríveis, foram três vocalistas (D2, Black Alien e BNegão), e ainda incorporou o DJ como um integrante fixo da banda. Sobre o retorno, acredito que o Planet Hemp continua atual e relevante, mas como já pediram os fãs, é hora de gravar músicas novas. Essa busca pela essência perdida não é fácil, mas o momento pede novas canções da banda.
7 – Você poderia nos citar alguns dos episódios mais icônicos e inusitados pelos quais a banda passou? Como era a relação dos membros com outros astros da música brasileira?
O que não falta na biografia são boas histórias. Em se tratando de Belo Horizonte, por exemplo, o primeiro show do Planet Hemp após a morte do Skunk foi no festival SuperDemo, em julho de 1994, na Praça da Estação, com três grupos mineiros. Em 1996, já com o primeiro CD, a banda tocou num sítio na Pampulha com as bandas Tianastácia e Mandrix. Em outubro de 1997, a banda tocou em BH com o guitarrista Jackson disfarçado, de capuz, no lugar do Rafael, que estava machucado. Pouco depois, no dia 7 de novembro, o Planet teve o show cancelado no Estação 767. Nessa triste noite, a banda tomou uma dura e passou a madrugada detida na delegacia de plantão do Departamento de Investigações, conhecida nos anos 1980 como “o inferno da Lagoinha”. O baixista Formigão contou que os policiais colocavam os cães da raça Doberman para latir pelas grades para intimidar os músicos. No dia seguinte o grupo seguiu para Brasília, onde foram presos, causando uma mobilização nacional. A relação entre o Planet Hemp e outros artistas era excelente, tanto que havia a Hemp Family, com Chico Science & Nação Zumbi, O Rappa e tantos outros. O Planet era amigo de todo mundo, inclusive Raimundos e Charlie Brown Jr. Estavam todos no mesmo barco e tentando sempre levar mais bandas amigas para dentro, indicando para gravadoras e tal.
8 – A que você atribuiu a polêmica gerada em torno da publicação, com Marcelo D2, o empresário e outros integrantes contestando o seu livro?
Sobre a nota do empresário, já foi esclarecida e agora todo mundo sabe que foi algo estritamente pessoal, sobre a vaidade e o ego dele. O próprio Marcelo D2 me telefonou na sexta passada para dizer que estava chateado com a polêmica e que os posts foram retirados da página da banda porque expressavam a opção pessoal do empresário, e não do grupo. Você viu as fotos dos eventos de lançamento? Estavam lá o D2, o Pedrinho (baterista), o Formigão (baixista) e ex-integrantes como o DJ Zé Gonzales, o tecladista Apollo Nove e o primeiro baterista, Bacalhau. Se você quiser mesmo falar sobre esse assunto, que já é passado, sugiro a nota pública assinada por mim e pelo dono da editora.
9 – É possível perceber herdeiros do Planet Hemp na música brasileira? Qual foi a importância do Skunk para a banda? Você chegou a assistir ao filme que saiu sobre a amizade dele com D2 durante o processo de feitura do livro ou preferiu não fazê-lo? Se sim, o que achou do filme?
Como toda banda em evidência, o Planet Hemp influenciou muita gente, tanto pela temática quanto pelo jeito de cantar dos vocalistas, em especial o Marcelo D2, a tal “voz de bruxa” que ele faz, por exemplo, em “Dig Dig Dig”. No lançamento em Vitória, tocou uma banda cover deles chamada Beck Power. Em fevereiro, no Rio, vai tocar uma banda canábica chamada Korja Weed. Esse é o Planet Hemp fazendo efeito. O Skunk foi a sementinha do Planet Hemp, saiu tudo da cabeça dele. Um cara fantástico que foi homenageado, ainda que tardiamente, no filme “Legalize Já”. Assisti duas vezes e adorei o longa-metragem. Inclusive, o diretor Johnny Araújo também foi entrevistado para o livro e me cedeu boa parte da pesquisa feita para o filme. Tomara que venha a continuação, a partir da morte do Skunk, e que poderia perfeitamente se chamar “Mantenha o Respeito”.
10 – Qual a música da banda melhor representa ou fala sobre o momento político do país, na sua opinião? A ideia de colocar uma folha de papel de seda nas páginas foi levada adiante? Se não, por qual motivo?
Todas as músicas caberiam, mas os fãs citam bastante “A Culpa é de Quem?” e “Futuro do País”. Se o Planet Hemp gravasse um single agora provavelmente se chamaria “Ele Não, Ele Nunca”, visto que o Marcelo D2 é um dos principais críticos do presidente eleito. Vale lembrar que a banda tocou no Circo Voador em abril de 2018, num evento chamado “Marielle Gigante”, pedindo às autoridades uma conclusão para o assassinato da vereadora Marielle Franco, a homenageada da noite. Eu queria muito que tivesse uma página de seda no livro ou mesmo uma seda personalizada encartada. Até onde eu soube, a editora não conseguiu viabilizar. Mas nunca é tarde para levar adiante isso, mesmo que numa segunda edição. Estamos sempre abertos a parcerias, sempre mantendo o respeito.
11 – Qual foi o grande diferencial dessa sua empreitada em relação a outras biografias? Tem planos de biografar outros personagens para breve?
O tamanho da encrenca. Eu sabia que escrever a biografia do Planet Hemp seria como mexer num vespeiro, com muitos egos e pontos de vista conflitantes. Mas a maior dificuldade foi realizar a pesquisa, já que nem a banda, nem a produtora, tinham material suficiente de arquivo. Então eu tive que reconstruir a cronologia da banda e pesquisar muito, até chegar na fase das entrevistas e organizar a história de forma lúdica e de fácil compreensão. No final fiquei muito satisfeito, o livro é só elogios. Essa não é a minha primeira biografia, já havia feito a do quadrinista paulista Marcatti, a do falecido pintor angolano Filipe Salvador e também a do professor e historiador Chico Alencar, que foi deputado federal pelo PSOL por quatro mandatos. Admiro muita gente que daria uma bela biografia, mas por enquanto estou focado na divulgação do Planet Hemp, essa plantinha ainda vai dar muito o que fumar. Digo, o que falar (risos).
Raphael Vidigal
Fotos: Vanessa Carvalho/Divulgação