*por Raphael Vidigal Aroeira
“e seu rosto ébrio, severo, cobre-se com um sorriso, desses que ocorrem no rosto das pessoas, quando veem diante de si algo pequeno, tolo, ridículo, mas ardentemente amado.” Tchekhov
Por alguma razão, os distribuidores de “Tre Piani” decidiram manter o título original do filme, inspirado no romance do israelense Eshkol Nevo, cuja tradução literal seria algo como “Três Andares”, o que, convenhamos, não é nada de extraordinário. Nani Moretti, diretor italiano que também atua no longa-metragem, e conhecido, sobretudo, pelo simpático “Habemus Papam” (2011), optou por esse título simples, até um tanto sem-graça. Na primeira tomada, observamos esse prédio de três andares em que residem as três famílias que conduzirão a trama, com uma árvore lúgubre posicionada em frente à sua fachada, de onde surge a primeira personagem. Pela maneira como é filmada, não há como precisar se é uma adulta ou uma criança, o que talvez seja a chave para compreender o que está em discussão nessa história levada à tela.
A personagem está grávida, e por pouco não é atropelada por um carro em alta velocidade, que acaba vitimando outra mulher. Ao volante está Andrea, vivido por Alessandro Sperduti, filho do rigoroso juiz Vittorio (justamente Nani Moretti) e da também juíza Dora (Margherita Buy). Ao provocar o acidente, ele invade o térreo de Lucio (Riccardo Scamarcio), uma espécie de publicitário casado com a contadora Sara (Elena Lietti), pais de uma filha pequena que assiste a tudo atônita. Monica (Alba Rohrwacher) é a mulher que quase foi atropelada, e corre para dar à luz. Assim, os principais vértices da história são apresentados e se entrecruzam logo de cara. Lucio e Sara, dedicados ao trabalho, têm por hábito deixar a filha pequena com o casal de velhinhos que são seus vizinhos, Renato (Paolo Graziosi) e Giovanna (Anna Bonaiuto), donde emerge o primeiro drama.
Atrasado para a academia, Lucio deixa a filha novamente com Renato, mas, desta vez, Giovanna não está em casa. A filha e o velhinho, já apresentando sinais de demência, se perdem e o pai os encontra num parque, o que dá início a uma série de prospecções que ele não consegue responder, embarcando num tormento sem fim: terá a filha sido abusada pelo vizinho? A situação, obviamente, interfere no casamento e na relação com Sara, que mantém uma postura mais controlada diante do caso. Nesse ínterim, aparece Charlotte (Denise Tantucci), a adolescente neta de Renato, com a qual Lucio tenta sanar suas dúvidas, o que apenas o conduz a uma espiral de mais perversão e degradação. Afinal de contas, Charlotte é adulta ou criança? E o velho Renato, no final da vida, comportando-se como uma criança, terá perdido a sua moral?
São dúvidas que permeiam a narrativa. Ao mesmo tempo, Dora, mãe protetora, busca meios de amenizar a pena que será imposta ao filho rebelde, ao contrário do pai rigoroso e implacável, o que, fatalmente, levará essa família cheia de fissuras a uma ruptura. Já Monica, filha de uma mulher que sofre com alucinações, caminha para o mesmo destino assim que se torna mãe, enquanto convive com o marido ausente e o cunhado trambiqueiro, procurado pela polícia após aplicar diversos golpes em pessoas humildes. Há opressões por todos os lados, enquanto razão e desejo se contrapõem. Todas as histórias têm potencial para despertar interesse, mas a primeira se impõe, pela própria teia na qual envereda a natureza humana: a vítima converte-se em carrasco e a presa em predador, algo assim, pois todos são crianças e adultos. E, embora as histórias sejam bem apresentadas, as soluções do enredo soam previsíveis.
O que eleva o nível do filme são as atuações, que minoram efeitos negativos do roteiro. A imagem do corvo que simboliza os tormentos da mente de Monica é tão batida quanto o poema de Edgar Allan Poe que o consagrou. Quando a personagem de Luigi (Tommaso Ragno) é inserida na trama rapidamente desvendamos o motivo de sua inserção, assim como em tantos outros momentos. De relance, Nani Moretti ainda aborda a questão dos imigrantes e refugiados, mas o seu filme se volta principalmente para dentro, e não para fora, das personagens. Diante da idealização da família, os conflitos são reais. Se o desenvolvimento do filme não cativa como um todo, há momentos de acerto e interesse genuíno. Mas o final reafirma a sua vocação para o clichê e a previsibilidade. Todos os erros acabam redimidos, a esperança volta a reinar.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.