*por Raphael Vidigal Aroeira
“quanto mais densa e cerradamente se fecha a superfície do processo social da vida, tanto mais hermeticamente esta encobre a essência como um véu.” Theodor W. Adorno
Walter Benjamin e Theodor W. Adorno detectam, em seus respectivos ensaios sobre o assunto, a crise da narrativa, oriunda da transformação do mundo e da consequente apreensão e percepção de uma dita “realidade”, antes tida como tangível e palpável. O enfoque dos dois teóricos alemães é na figura daquele que se apresenta como detentor, ou, melhor dizendo, transmissor da história, como fica claro nos títulos dos ensaios: “O Narrador: Considerações Sobre a Obra de Nikolai Leskov”, publicado por Benjamin em 1936, e “A Posição do Narrador no Romance Contemporâneo”, que Adorno trouxe a lume em 1954, portanto quase duas décadas depois, o que permite que ele avance na discussão proposta inicialmente pelo colega, cujo ponto de partida, e que os aproxima, é a constatação do fim de uma era e do começo de outro momento.
Benjamin recebe esse mundo que se esfacela e assume uma condição fragmentária, prismática, opressiva e angustiante com desencanto, nostálgico de um tempo em que as experiências eram compartilhadas e havia o que contar, em forma de provérbio ou ensinamento moral, como ele destaca logo no início da explanação: “de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos”. O que não pode ser confundido com didatismo. Ao se valer da obra de Leskov como exemplo clássico desse narrador que desaparece, Benjamin enaltece a capacidade de narrar com precisão, sem que, contudo, o contexto psicológico seja imposto ao leitor. “Ele é livre para interpretar a história como quiser, e, com isso, o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”, diz, pleiteando a atemporalidade da narrativa.
Tal resultado acontece porque a narrativa, artesanalmente construída com a oralidade como princípio, vai ao encontro do essencial, reflete a condição humana comum a todos, e tece, via linguagem, as linhas constitutivas da vida do ser humano e sua relação com a morte – outro ponto nevrálgico para que ela aconteça. Adorno inicia suas considerações sublinhando um paradoxo: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração”, localizando o gênero em questão como “a forma literária específica da era burguesa”, que teria, por suas condições históricas e ideológicas, propiciado o apartamento dos indivíduos da comunidade, isolando-os e transformando a experiência do individualismo em coletiva, no sentido de ser dada a todos. E é para representar esse cenário que a antiga representação harmônica já faliu.
Tanto Benjamin quanto Adorno situam o “Dom Quixote” de Cervantes como precursor do romance realista. Logo, o “preceito épico da objetividade” ali presente é, nas palavras de Adorno, solapado pelo “subjetivismo, que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-Ia”. A perda de sentido unívoco do mundo obriga o romance a “se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato”. Adorno prossegue na análise dessa transformação dando exemplos de obras de Joyce, Proust e Kafka, que, cada um a seu modo, incendiaram a posição fixa e contemplativa do leitor com relação ao texto, exortando-o a conhecer os bastidores desse “palco italiano”. A distância de segurança é posta abaixo, e o escapismo ou a mera constatação de verdades deve tomar a forma intrincada do incômodo inerente à dúvida.
Como “contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice”, impõe-se um processo de ultrapassar a fachada para perscrutar os recônditos escuros de uma matéria densa e insondável, admitindo, nesse exercício de contraditórios, a impossibilidade de alcançar o que se busca, mas, ainda assim, incessantemente buscá-lo. Adorno escreve que “desde sempre (…) o romance teve como verdadeiro objeto o conflito entre os homens vivos e as relações petrificadas”. E, mais à frente, continua: “O impulso característico do romance, a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior, converte-se no esforço de captar a essência, que, por sua vez, aparece como algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento cotidiano imposto pelas convenções sociais…”.
Essa abordagem inovadora terá que ser feita, necessariamente, através da forma, preceito básico da narrativa que se quer literatura, como no caso do romance. E, aqui, encontramos paralelos com a posição do poeta russo Vladimir Maiakovski, artífice do movimento denominado futurista, que, na década de 1920, sustentou a necessidade de uma forma revolucionária como veículo indispensável a um conteúdo que tivesse igual pretensão de modificar o curso das coisas. “A violação da forma é inerente a seu próprio sentido”, resume Adorno, que recorre aos textos da maturidade de Thomas Mann para afirmar que “o autor, com o gesto irônico que revoga seu próprio discurso, exime-se da pretensão de criar algo real, uma pretensão da qual nenhuma de suas palavras pode, entretanto, escapar”. Maiakovski reforça: “Estou preso ao papel com o prego das palavras”, sublinhando essa “luta corporal”, e que requer um engenho árduo. Afinal, como já apregoou Roland Barthes, a “língua é fascista, porque obriga a dizer…”.
A conclusão de Adorno é que a mutação dessa linguagem e, consequentemente, de uma certa estrutura narrativa e do próprio narrador, aspira a transformar uma realidade que se tornou insuportável, que não pode ser simplesmente aceita e contemplada, diante da qual a resignação é uma atitude covarde e moralmente condenável. Em sintonia com o que Maiakovski proclamou em seu célebre poema futurista: “Por enquanto/ há escória/ de sobra./ O tempo é escasso –/ mãos à obra,/ Primeiro/ é preciso/ transformar a vida,/ para cantá-la –/ em seguida”. Todavia, o movimento é simultâneo, transforma-se a “realidade” ao mesmo tempo em que ela é vivida, com os instrumentos dessa narrativa que se debate contra os próprios limites e projeta-se para além deles, almejando uma perspectiva mais aberta e menos falsificadora da essência.
E como a matéria a se entrar em contato e revelar aos outros é ainda a de hoje, Adorno arremata: “Nenhuma obra de arte moderna que valha alguma coisa deixa de encontrar prazer na dissonância e no abandono”. Benjamin morreu sem conhecer tal conclusão…