*por Raphael Vidigal
“Ir falando contigo, e não ver mundo ou gente.
E nem sequer te ver – mas ver eterno o instante.
No mar da vida ser coral de pensamento.” Cecília Meireles
É com uma resolução matemática que Tim Bernardes tenta mensurar o que não vê. “Sinto que mais de noventa por cento é invisível”. O segundo álbum solo do músico paulistano também mistura a precisão numérica à vastidão do enigma. “Mil Coisas Invisíveis”, lançado no ano passado, serve de base para o espetáculo que ele traz neste final de semana a Belo Horizonte, como parte da programação do Festival Sons do Brasil, que ainda leva para a capital mineira e à cidade histórica de Ouro Preto shows de Anastácia, Monobloco, Cristóvão Bastos e Alaíde Costa, entre outros. “Vivo muito num mundo interno, subjetivo”, conta Tim.
O batismo do disco surgiu quando a ficha do compositor caiu diante de uma realidade mais caótica e inexplicável do que presume a nossa vã filosofia. “Houve uma quebra dessa visão de mundo como algo concreto e racional, que segue uma regra. O racional corresponde a uma pequeníssima porcentagem da nossa inteligência interna e da nossa sensibilidade, e que tem uma tendência a nos fazer ver as coisas de maneira muito conceitual e achar que o mundo se comporta de maneira causal, enquanto o mundo e a realidade são muito mais fantásticos e milagrosos do que podemos imaginar. A ciência ainda sabe pouco”.
Renascer. Na faixa “A Balada de Tim Bernardes”, o artista parte de um sonho para relembrar a avó afeita a bruxarias. Em “Mistificar”, o título já diz tudo. A temática permanece, de outro modo, em canções como a impressionante “Esse Ar”, que consegue ir da bossa nova ao samba-canção, embebida em drama e leveza, e na derradeira “Mesmo Se Você Não Vê”. Com “Meus 26”, Tim atinge a proeza da síntese poética no mais alto nível: “o escuro às vezes lembra o infinito/ às vezes me lembra o fim”. Novo exemplo dessa capacidade aparece na letra de “Nascer, Viver, Morrer”, que abre os trabalhos: “que prova existir vida antes da morte”, sugere, matreiro, invertendo expectativas, desapontando senso comum.
“Eu não enxergo melancolia, embora haja canções tristes e que, à primeira vista, podem soar melancólicas. Vejo como uma tentativa de sublimar, em beleza, sentimentos que são mais tristes”, observa. Tim traça um paralelo com o disco “Recomeçar”, de 2017. “Ali era uma coisa de lidar com o fim, deixar uma coisa acabar. Esse novo álbum fala sobre seguir, renascer no novo, numa nova fase, uma espécie de deslumbramento para essa dimensão milagrosa. Nesse sentido, é um disco mais metafísico, místico, de ser surpreendido pelo renascimento”, aponta. Ao longo de 15 faixas, Tim lida com a consciência da finitude não como lamentação, mas disposição ao desapego, entregue à magia do próprio instante.
Estilo. Do alto de seus 32 anos, Tim conseguiu o prodígio de criar um estilo, o que significa ser identificado e diferenciado dos demais pela maneira de tocar, compor e cantar. Em sua casa, entrava do funk erótico e pornográfico do Furacão 2000 ao experimentalismo de Frank Zappa, mas era obrigatório “conhecer os clássicos”, que para o pai, o músico Maurício Pereira, tratava-se de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor, Os Mutantes, Tim Maia, Rolling Stones e Beatles. Criança e adolescente, Tim se habituou a ouvir do patriarca: “Pode gostar da música que quiser, não existe música boa e música ruim”. Crescendo nos anos 1990, Tim sentiu uma paixão espontânea pela sonoridade sessentista, que se opunha à “padronização pouco criativa sonoramente ouvida nas rádios”.
Era o começo da era da internet, o que permitiu a Tim embarcar em um túnel do tempo em que era possível baixar os discos da gloriosa década de 1960, quando a experimentação sonora convivia intimamente com o sucesso mercadológico. O exemplo central eram os garotos de Liverpool, mais conhecidos como The Beatles, principal referência da obra de Tim, citados nominalmente, e não uma só vez, no novo disco. “Fui pegando coisas de que gosto e não querendo outras. Quando você vai para o estúdio, esses gostos que se introjetaram, muitas vezes por osmose, outras propositalmente, aparecem e isso influencia também a imagem, o comportamento, a moda, cultura pop é assim”, avalia Tim, que concilia a sonoridade dos Beatles ao jeito de tocar violão de Jorge Ben Jor nos primeiros discos, com o timbre de guitarra dos Mutantes e a bateria do The Electric Prunes.
Criação. Em 2019, Tim tornou-se parceiro de Jards Macalé com “Buraco da Consolação”, feita para o renovador disco “Besta Fera”, e, inclusive, participou da gravação, cantando em dueto com o anfitrião. Na faculdade, ele recebeu das mãos de Gabriel Basile, parceiro na banda O Terno, o histórico primeiro disco de Macalé, que chegou à praça em 1972. “Eu, que sou um guitarrista que também toca baixo, gosto muito do jeito do Lanny Gordin tocar no disco, e também do som do baterista Tutty Moreno, aquele jeito cool, sem falar nas composições”, sublinha. A trupe que acompanhava Jards voltou a dar as cartas no aclamado LP “Transa”, de Caetano Veloso, gravado durante o exílio do baiano em Londres, na mesma década de 1970. “O Caetano é totalmente vidrado em João Gilberto”.
Do Papa da Bossa Nova, Tim carrega a admiração pela “estética, o som das gravações, como se colocar musicalmente, o jeito de cantar”. Ele posiciona João Gilberto e Jards Macalé como “influências diretas das suas influências mais diretas”. “É esse tipo de artista que, quando você vai conhecer, você repara que já é influenciado por ele de tabela”. Claro que o pai do entrevistado tampouco ficou fora dessa equação. “O jeito livre dele de pensar foi abrindo minha cabeça em relação a ter opinião própria, ter uma abordagem autoral, construir uma linguagem”, afirma Tim, que ainda o reputa como “um letrista muito interessante, com uma linguagem coloquial e um timbre de voz específico”. Ao lado de André Abujamra, Maurício Pereira fundou, lá para 1985, o duo Os Mulheres Negras, influenciados, sobretudo, pela música de vanguarda e pelos experimentalismos.
Tempo. Na estrada há mais de uma década, quando emergiu para o cenário indie à frente da banda O Terno, cujo álbum mais recente, “Atrás/Além”, é de 2019, Tim garante estar “sempre com a antena ligada, tentando ver se pesco alguma coisa que realmente me toque, aí eu toco pra frente”. “Não tenho regra, mas, normalmente, gosto de fazer música e letra juntas. Quando um assunto, frase ou reflexão me pega e sai em forma de verso, esse verso sugere uma melodia, que sugere a próxima linha melódica. Não costumo fazer muitas canções para depois ver qual eu gosto. Sinto que só continuo uma composição quando estou empolgado com a ideia e ela me parece relevante”, sustenta Tim.
Certos registros do músico combinam vocais rascantes com sussurros que exigem atenção total, como na música “Olha”, dilacerante fim-de-caso, o que pode ser complicado em tempos dispersivos como os atuais. Apesar desta constatação, Tim está longe de se sentir deslocado. “Cara, eu tendo a gostar muito da nossa época. Temos acesso a músicas de várias gerações e podemos produzir de maneiras bem interessantes. No meio de tanta oferta e informação, temos o desafio saudável de tentar criar algo que contraste com o todo”. Frente a um cenário regado a excessos de todos os tipos, Tim confidencia que seus momentos de criação são solitários e imersivos. “Tento me recolher desse mundo efêmero, sinto falta de coisas mais profundas, que nos levam para lugares quase meditativos”. Ele nota que essa “sede de coisas mais eternas e atemporais” também tem seus seguidores. Tanto que, na dita “era do single”, segue lançando seus “discos compridos”, enxergando às vezes o escuro, e, em outras, o infinito…
Serviço.
O quê. Festival Os Sons do Brasil, com Tim Bernardes
Quando. Neste domingo (24), às 20h
Onde. Grande Teatro Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, Centro)
Quanto. Ingressos esgotados
Foto: Pedro Dimitrow/Reprodução.