Show: Zé Ramalho & Banda Z

“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!” Augusto dos Anjos

Zé Ramalho Chão de Giz

Detrás das neblinas, perde-se de vista o horizonte, um carneiro é sacrificado em nome do Pai, um velho conduz o rebanho com o cajado, feito de madeira, arame, esculpido por mãos comidas por rugas e outros animais que vêm a ter sabedoria pelas profecias dele: o homem.

O homem é desde os primórdios o mais inteligente de todos os animais, e de longe o menos sabido. A intuição conservada nos seres puros perdeu-se com a progressão dos anos, meses, milênios, pouco restou do que havia de lúdico, frutífero, ingênuo.

Com dois pedaços de bambu inúteis e macilentos, constrói-se calmamente, ao labor das horas, despido da pressa dos compromissos, um instrumento. Ignora-se a conotação funcionalista que esta palavra possa gerar em mentes distraidamente antológicas, vindas da neurociência, prontas.

No pasto, a incompletude une-se ao incomum e dá-nos: uma viola de harpas, pandas roendo bambus e deles extraindo: música. Hortaliça, tomate, banana: frutas. Como a música, sustentam alguma coisa, sim, sustentam, é preciso alimentar-se por uma necessidade básica, primária.

Após saciar-se é que se entra em contato com o núcleo duro, rígido, inviolável. Aprecia-se, degusta-se, cava-se com patas lambuzadas o espaço para o prazer da gula, o pecado da: música-fruta-música. Cai uma casca vermelha de tomate, a serpentina amarela da banana, os fios verdes das hortaliças amargas: que divertem, reagem, refratam os aplausos vindos de baixo.

E Zé Ramalho, no alto, no pico, no cume da montanha, na ponta do morro negro, no gelo do iceberg. O homem sábio, de olhos pequenos, fechados, grande nariz arroxeado, marcas dos tempos cravando funduras no rosto: este nada exibe de cansaço, é coragem, cortejo, candura. O mais doce dos homens da Terra é um castiçal aceso com muitas velas: acesas, apagadas, tremem.

No chão, um desenho de giz é carcomido pela chuva, não ácida, mas transbordante. Uma mulher, também no chão, ajoelhada, deixa-se enovelar pelo frevo como um macio cafuné por entre cabelos cacheados. O avô, não de muitos, mas de todos, embarca na asa de uma águia e desprende-se de onde os outros estão. Mesmo o homem do espelho, o messias, Zé Ramalho, olha para o além. Olhamos com ele, sorrimos, e lembramos tristes. Da condição humana.

Show Zé Ramalho

Raphael Vidigal

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13 Comentários

  • Ahhhhhhhhhh…

    achei muito bom!!!!!!!
    Só tem que ter um conhecimento prévio das músicas… acho que dá pra fazer um com os trechos das músicas e a história de vida dele também.
    Mas achei sensacional!!!
    E muito viajado ter um “panda” no meio de tudo… heuehueheuheuh

    O final fecha com chave de ouro! “Zé Ramalho, olha para o além. Olhamos com ele, sorrimos, e lembramos tristes. Da condição humana.”

    Resposta
  • Assisti recentemente um filme-documentário sobre a vida dele no Canal Brasil…Muito bom, ele contando sua própria história, ex-estudante de medicina…

    Resposta
  • pude sentir que o Zé é Zen! rsrs Tranquilo e realista tbm. Foi em busca dos sonhos, curte a família e segue cantando muito bem!

    Resposta
  • O que marca nas músicas do Zé mais que tudo é o simbolismo. Você mostrou isso de uma forma maravilhosa.

    Resposta
  • a música, o compositor e o grande intérprete ( e de quebra um poeta)! Adorei o texto e a dica!

    Resposta

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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