Sérgio Sampaio coloca o bloco na rua outra vez com o riso e a dor de poeta

*por Raphael Vidigal

“Minha loucura está prevista pela irreversibilidade da vida.” Béla Tarr

Doido que não se situa. Mais um pobre felino. Homem de trinta. Um compositor popular. Todas essas definições cabem e são insuficientes a Sérgio Sampaio (1947-1994). Dadas por ele mesmo, através de canções autobiográficas, poéticas e melodicamente inspiradas, as palavras tomaram novo corpo e alma nas gravações de Cida Moreira e Edy Star que, cada um a seu modo, dedicaram álbuns ao amigo, e também de Maria Bethânia e Chico Chico – herdeiro de Cássia Eller que deixa antever a presença da mãe em sua voz rascante –, que participaram do disco coletivo “Biscoito Fino”, lançado pela gravadora de mesmo nome, com a pungente “Em Nome de Deus”, composição de Sampaio que permaneceu inédita até 1998, quando Chico César a cantou no “Balaio do Sampaio”, e, depois, veio à luz na voz do próprio autor, em 2006, com a edição de “Cruel”, produzido por Zeca Baleiro, que garimpou o acervo do cantor.

Amizade. “Fui amiga do Sérgio Sampaio na década de 1970, quando ele estava por aqui, nas noites paulistanas. Tínhamos muitos amigos em comum. Eu não o conheci profundamente, mas conversamos por telefone uma semana antes de ele morrer”, conta Cida. Já Edy o conheceu quando ele chegou ao Rio de Janeiro, em 1971.

Natural de Cachoeiro de Itapemirim (mesma cidade de Roberto Carlos, para quem compôs “Meu Pobre Blues”, gravada por Zizi Possi), no interior do Espírito Santo, Sampaio largou a carreira de radialista para tentar a sorte como cantor, e logo começou a passar fome, como descreve em algumas letras.

Foi nessa situação que apelou ao executivo da multinacional CBS, à época um irreconhecível Raul Seixas de terno e gravata. Contratado pelo “Maluco Beleza”, gravou um compacto com “Coco Verde” e “Ana Juan”, antes de ser convocado para a “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10”, o cultuado LP feito com Miriam Batucada, Raul e Edy Star.

Barra-pesada. “Até a morte dele, fomos grandes amigos. Sérgio era muito brincalhão, gozador, adorava fazer trocadilhos”, rememora Edy, que também conheceu o lado barra-pesada do amigo, que morreu em 1994, aos 47 anos, vítima de uma pancreatite crônica causada pelo uso de álcool, cigarros e pela má alimentação, após uma vida de excessos.

“Depois que o segundo disco não teve sucesso, ele viajou para Itaparica (na Bahia), se internou lá, fumava maconha o dia inteiro, bebia muito, não conseguiu levar adiante o próximo disco, a família teve que ajudar e, no dia que era para gravar, não conseguiu, porque foi internado e morreu logo em seguida”, lamenta Edy. Na Bahia, Sampaio teve a companhia de Luiz Melodia (1951-2017), igualmente afeito à boemia.

O cantor de “Pérola Negra” gravou, de Sampaio, “Que Loucura”, que retrata outro episódio traumatizante, emoldurado pela fina poesia do artista: “Fui internado ontem/ Na cabine 103/ Do hospício do Engenho de Dentro/ Só comigo tinham dez/ (…) Eu tô maluco da ideia/ Guiando carro na contramão/ Saí do palco, fui pra plateia/ Saí da sala e fui pro porão”, diz a letra. Cida e Edy traçam o mesmo veredicto sobre a falta de reconhecimento experimentada por Sampaio, sem incorrer num julgamento moralista.

Abandono. O coro, nesse caso, é unânime: “Ele se afastou”, dizem. “Falar no Brasil que alguém não teve o reconhecimento devido à altura de seu talento e morreu no ostracismo é uma redundância, temos centenas de exemplos e o Sérgio foi apenas mais um deles, porque também não ficou no Rio de Janeiro ou nem aqui em São Paulo, na mídia, ele ficou rodeando. Passou um tempo no Espírito Santo, foi para a Bahia, se afastou e pronto. É uma história brasileira muito comum”, avalia Cida.

Na visão de Edy, depois de “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, que estourou no Festival Internacional da Canção, em 1972, com a performance libidinosa e enérgica do compositor, “o Sérgio se abandonou, ele não queria mais fazer sucesso e começou a viajar, foi morar no interior da Bahia, se afastou dessa indústria”. Em 1992, Edy se mudou para a Europa, e deu início a uma bem-sucedida carreira nos cabarés da cidade, atuando também como artista plástico.

Dois anos depois, ao receber a notícia da morte de Sampaio, e de Miriam Batucada, num intervalo de meses, ambos com 47 anos, sua cabeça “deu um nó”. Raul havia partido em 1989, outro na faixa dos quarenta anos. Ele era o último remanescente da Grã-Ordem Kavernista. “Achei que estava na minha hora de morrer também”.

Biografia. Aos 85 anos, Edy Star está vivíssimo e sentiu que era hora de pagar uma dívida antiga. “Acho que eu devia um álbum ao Sérgio, calhou de ter essa oportunidade e consegui convencer a gravadora”, diverte-se ele, que “adoraria também gravar um disco com músicas do Zé Rodrix, outro grande amigo que merece ser lembrado”. Ao lado do produtor Thiago Marques Luiz, ele projetou um disco de inéditas, mas logo desistiu. “Seria muito perigoso”, salienta Edy que, na década de 1970, em plena ditadura militar, foi o primeiro artista a assumir-se gay no Brasil.

Então, os dois foram pelo gosto pessoal na seleção das dez canções que integram “Meu Amigo Sérgio Sampaio”, cuja imagem da capa mostra os amigos em close, com participações de Zeca Baleiro, Maria Alcina e Renato Piau. Edy queria onze faixas, mas na edição física só cabiam dez. “Ai, é tão difícil essa vida, querido”, suspira Edy, que inegavelmente viveu à sua maneira, como canta em “Ninguém Vive por Mim”, que abre os trabalhos.

“Desde que comecei a vir a São Paulo, em 2009, canto essa música em todos os meus shows, é a minha cara, minha biografia”, sublinha. “E eu, boêmio cantor da lua/ Doido que não se situa/ Fui procurar viver além de mim/ E eu, simples cantor solitário/ Entre malandros e otários/ Vivo o que sou, ninguém vive por mim”, define o refrão. “Talvez a principal característica da obra do Sérgio seja o teor autobiográfico e o modo poético como ele se traduz. E ele era muito pródigo musicalmente, na hora de compor”, afirma.

Repertório. Cida Moreira detecta essa mesma versatilidade em Sampaio, que transitava com facilidade por diversos gêneros musicais, como samba, rock, blues e pelos ritmos latinos. Era um autêntico tropicalista que não se fiava por turmas e acabou exposto pela solidão de quem não assente às panelas. “Eu tenho andado sem turma/ Mas solitário eu sei que não dá pé”, cantava ele em “Homem de Trinta”, uma alusão mordaz à “Mulher de Trinta” celebrizada por Balzac e entoada na música brasileira pelo cantor Miltinho, mestre na divisão rítmica.

“Ele sempre foi um compositor muito robusto em termos de sentimentos. A obra dele é muito facetada. Infelizmente, o que é mais conhecido são as coisas que fizeram mais sucesso, que são as canções mais catárticas, digamos assim. Mas ele tem uma obra muito grande e eu, particularmente, sempre me emocionei muito mais com as canções mais intimistas, doces, simples, ou mais irônicas, ou mais brincadeiras com a palavra, com os estados da alma, com a vida dele e tudo mais”, pontua Cida.

É o caso, por exemplo, da delicada e concisa “A Luz e a Semente”, prenhe de uma poesia aguda e sincera, que surge no disco de Cida logo após um prólogo em que ela recita trecho do grande estandarte de Sampaio, “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”. “Eu, particularmente, nunca gostei muito dessa música, até porque tenho dela uma visão muito diferente. Acho uma música triste e, até onde pude saber, falando com o Sérgio, foi feita bem na época da ditadura, e isso transparece na letra. Depois ela tomou um sentido catártico, carnavalesco”, observa.

Proposta. Embora compareça no bis do show, a cantora não via sentido em “veicular novamente” uma música tão conhecida, nome de recente espetáculo de Ney Matogrosso, regravada por uma dezena de intérpretes. “Eu sempre passo ao largo das obviedades. Essa talvez seja uma boa qualidade minha ou uma péssima qualidade, que me joga num nicho que não é o do mainstream ”, vaticina.

Em 2018, ciente do amor da mãe pelo artista, a filha de Cida trouxe para ela um songbook adquirido na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), produzido por João Sampaio, único filho de Sérgio. De posse das partituras, a intérprete se lançou ao prazer de cantar e tocar aquelas canções ao piano. No ano seguinte, Cida recebeu “um simples telefonema de dois músicos de uma geração mais jovem, muito bem formados musicalmente pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas”, como ela qualifica.

Para lembrar os 25 anos da morte de Sampaio, Ivan Gomes e Lê Coelho tinham uma proposta irrecusável para Cida. O espetáculo com canções do “poeta do riso e da dor”, título do disco que eles acabam de lançar, estreou no Sesc Pompéia, em São Paulo, no final de 2019, com seis músicos no palco e uma plateia emocionada. Mas, aí, veio o turbilhão provocado pela pandemia.

Retorno. A agenda para 2020 teve que ser subitamente interrompida. Em 2021, questões pessoais e a insistência da emergência sanitária que vitimou milhões de pessoas ao redor do mundo mantiveram o projeto em suspenso. Quando sentaram para viabilizar o desejo em 2022, compreenderam que o país não comportaria um show com seis músicos do dito mercado independente em homenagem a um compositor pouco conhecido. O Ministério da Cultura, atualmente comandado pela cantora Margareth Menezes no terceiro governo Lula, havia sido vilipendiado e extinto.

O trio começou tudo de novo e recriou os arranjos, agora com Cida ao piano e na voz, Lê Coelho no comando da guitarra e dos violões, e Ivan Gomes com o seu contrabaixo acústico. A seleção do repertório não trouxe dificuldades. “Comungamos da mesma visão, o mesmo tipo de escolha, preocupação e sensibilidade acerca desse grande poeta chamado Sérgio Sampaio”, assinala Cida. “Na Captura”, “Quatro Paredes” e “Tolo Fui Eu”, canção da qual foi retirado o verso que intitula o álbum, comparecem ao longo das doze faixas, incluído o prólogo.

Curiosamente, a única música em comum que tanto o álbum de Cida quanto o de Edy contemplam é “Não Tenha Medo”. As versões completamente pessoais e a diferença no repertório evidenciam a amplitude da obra poética de Sampaio. “Desde sempre o que me fascinou no Sérgio foram as suas colocações poéticas, políticas e geracionais, de determinados sentimentos e maneiras de reagir perante a realidade que vivíamos”, destaca Cida.

Na efervescência cultural daqueles anos 1970, ela era ainda uma garota entre seus 18 e 20 anos, morando em São Paulo, impactada tanto com o aparecimento de Sampaio quanto de toda uma cena potente e de enfrentamento à ditadura militar que a contracultura levava para o teatro, o cinema, a música e as artes plásticas.

Essência. “Isso nos fez criar e sermos uma geração de pessoas raivosas, com toda razão, e muito resistentes”, afiança Cida. Entrando na faculdade de Psicologia, já “profundamente ligada à música”, Cida se conectava política e artisticamente a “todos os personagens que lutaram pelo Brasil, em todos os aspectos, naquela época”.

Nesse sentido, “a música do Sérgio Sampaio caía como uma luva e me emocionava muito, como me emociona até hoje”. “Tenho todos os LPs dele, tive o prazer de acompanhar toda a sua carreira enquanto ele estava vivo”.

O desaparecimento de Sampaio não impediu que esse caminho continuasse a ser trilhado. Ainda que seja apenas “um compositor popular”, como Cida canta na lancinante “Tem Que Acontecer”, a obra permanece, e “está toda aí, para ser ouvida, conhecida e amada”. Convém chamar os poetas quando se quer saber melhor de alguém, ou sobre si: “um poeta do riso e da dor/ da tristeza e alegria do amor/ ah meu bem/ pouco prazer não é coisa/ pro meu coração/ que foi feito pra grande paixão/ para os amores maiores como o meu”, cantarola Cida, dentro da melodia e da palavra. “Essa é a essência de Sérgio Sampaio”.

Foto: Museu da Imagem e do Som/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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