Revelações

“Palavras, quero-as antes como coisas.” Adélia Prado

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Comportava. Sim, a amizade comportava declarações. Revelações, de fato não. Mas a tessitura estabelecida já se encaminhava para o destino trágico. Confissões, essas ocorriam mais raramente. Incrustados e jamais dizíveis no espaço tampouco se clamavam, mas um atendia pelo outro ao menor solfejo.

Juba gasta pinicando as bochechas era a maneira de aproximar-se. Abria-a lentamente as pétalas, como uma lata de leite condensado cortada, e entrava o muxoxo rouco. Sonoro, porém pouco.

Preciso te contar. Preciso ouvir. Era a transmutação soterrada por inúmeras tentativas incompletas e inconclusas. Reclusas, as duas naturezas no desterro do porém, perdão, fica pra mais tarde, agora não dá, quem sabe outro dia, outra hora, outra vinda volteada.

Surtiam efeitos fálicos as investidas recalcadas e dorminhocas. Preferências de sabores e noites entravam na lista em primeiro lugar. Então para se começar os fatos havia primeiro de se decidir o gosto. Doce, azedo, agridoce, amargo eram soluções práticas, mas pouco eficazes. Optavam, ao invés, por cores de frutas combinadas: amarelo do pequi com o amarelo da limonada.

Predominava a tristeza feita lasca arrancada de árvore velha. Bafo da manhã. Onça sem pinta na esteira ao redor do bote e desespero de proteger a cria enquanto assa a pele ensolarada e o interno esfomeado. Eram como eram.

Pouco comuns, concordavam e consideravam a opinião (essa mania de se colocar como e quando) alheia. Combinavam em alguns refrescos, ardiam em outros cães complexos. Em meio à solidão, na algazarra festiva do mundo igualitário e desastroso, tinham lá suas meias nos pés e cachecóis nos pescoços sufocados. Mas é preciso um mínimo de sufocar para agüentar todo o resto, ou pelo menos apanhar sem jorrar lágrima e sal e fresta. Da janela.

Janelas infestadas de frestas. Era por onde (e aí o local aproxima) se comunicavam. No sentido mágico do espelho que rebobina subconjugações da realidade, encontravam-se. Assim, meio mato meio asfalto. Meio tijolo meio barro. Meio gente vivendo a morte no cotidiano intrincado. Eterno enquanto dor profunda.

Queriam na medida em que desmediam vocações, indagações, induções e medos. Rebeldia era palavra de feltro. Queriam sem saber donde partira o querer propriamente dito e até mesmo se podiam ou deveriam cumprir algum destino. Desatino era palavra do vento.

Vestiam só para provarem o controle d’alguma coisa. O poder desde cedo lhes os inebriou os sentidos mais robustos e mais sombrios. Sacrilégios jaziam vagamente em horizontes perpendiculares e rodeados por rostos pregados no chão. Uma superfície imóvel, tocável, crível. Acreditar era necessário. Mas tão difícil frente ao frescor forte da mentira.

Perdiam-se por alternativas. Na implicância de descobrir o caminho através de provações forçadas. Ele, no fio da meada. Ela, no meio da fiação. Elétrica de choque e entrega, um jogo estabeleceu-se entre dois: mundos e sortes nas frestas de janelas infestadas (de trigo e joio e até mesmo feijões e arroz, desde o mais simples ao temerário).

Partiu os pedaços frisos. Afastou o que pertencia aos cantos, às bordas, bordões, retratos. Desafogou a camisa encharcada de respiros que não levam calma, resistem aos apelos de clemência e seguem a retirada ao findo. Mamilos seculares do homem se tornando leão em pêlo. Passeou por cima da cabeça caracóis e caramujos lentos. Cachos revigorantes diziam: segue à frente, te espera a fêmea.

Disposta em correntes marítimas e medievais, a frondosa árvore balança os galhos anunciando a madura colheita. Deserta ao outono o fértil, pois é na pá de lixo que se encontrará a folha do intransponível com capacidade de renascimento. O que orbita em sensações para perfeita admiração, logo perde a graça ao cair do velho sobre o novo.

Enovelaram-se os milhares de ninhos e ninharias dos pássaros abatidos. Cheios de incompreensões, desfazendo nós. Devolvendo nós (revolver) com o próprio arado, ainda tranco, ainda fraco. Imaturo e farto. Sabão duro e limpo e concreto e forte desfazendo-se ao contato soberano. Da pele viva vivida com a gordura ácida graxa e potássio, morta. Doida e doída salientava um ambiente arejado. Ele, olha-se ao fundo de sua fortuna aerada. Esta entendeu que era ágil.

Quando quisera repetir, não por palavras: Frágil.

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Raphael Vidigal

Pinturas: “Separação” e “Melancolia”, respectivamente, de Edvard Munch.

Publicado originalmente no blog “O Ovo Apunhalado” em 28/12/2011.

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9 Comentários

  • Uma superfície imóvel, tocável, crível. “Acreditar era necessário. Mas tão difícil frente ao frescor forte da mentira”.

    “Perdiam-se por alternativas”.

    “Deserta ao outono o fértil, pois é na pá de lixo que se encontrará a folha do intransponível com capacidade de renascimento”.

    Adorei essas partes!!! =D

    Resposta
  • Riquíssimo vocabulário. Abundância na vírgula, ou melhor, vírgula em abundância, é pra quem sabe a que se presta, é pra quem sabe dar vida às palavras, ao texto, à poesia. É pra quem, a cada dia, me surpreende com as palavras, com o talento. Já falei que você vai longe?

    Resposta
  • Mais uma deliciosa surpresa
    numa manhã chuvosa!
    “O que orbita em sensações
    para perfeita admiração, logo
    perde a graça ao cair do velho
    sobre o novo”.
    Fantástico!!!Soberbo!!!
    Nossa, eu amei!!!
    Parabéns, Raphael!
    Beijos encantados,

    Resposta
  • Uma maravilha!!!!! parabéns Raphael Vidigal… coisas que preenchem nossas vidas… bjos

    Resposta
  • Perfeito… Vejo poesia em cada pequena palavra, nas entrelinhas, vejo poesia na poesia!
    Belo trabalho!

    Resposta

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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