Relembre sucessos musicais de artistas que nos deixaram cedo

*por Raphael Vidigal

“Tenho por ti uma paixão
Tão forte e acrisolada,
Que até adoro a saudade
Quando por ti é causada.” Florbela Espanca

Eles se foram cedo, mas deixaram para a posteridade músicas que seguem tocando o coração de várias gerações. Não é raro na música popular brasileira que um grande talento tenha sido ceifado precocemente pelo tempo. Felizmente, a obra sobrevive ao autor, o que nos permite relembrar canções embebidas em romantismo, que vão desde a década de 1950 e 1960, com as divas Dolores Duran, Sylvinha Telles e Maysa, e chegar até os anos 2010, época do fenômeno protagonizado por Marília Mendonça na música sertaneja, passando por Antônio Marcos, Jessé, Taiguara, Gonzaguinha e tantos outros…

“Sem Você” (samba-canção, 1956) – Sylvinha Telles
Sylvia Telles estava só começando a carreira quando, em 1955, cantou num Teatro, em Copacabana, o samba “Amendoim Torradinho”, composição de Augusto Garcez e Ciro de Sousa de intrínseca sensualidade, depois reinventada por Ney Matogrosso. Nessa época ainda não chegava a ser Sylvinha, título que só apareceria em sua discografia em 1962, ainda assim sem o Y. Mudou-se de nome muitas vezes na carreira, passando de Silvia a Silvinha e depois Sylvinha, a intérprete manteve ilesas duas características: a leveza e o refinamento, como comprova o samba-canção “Sem Você” de 1956.

“Ouça” (samba-canção, 1957) – Maysa
A voz caudalosa de Maysa, aqueles “oceanos não pacíficos” em seus olhos. Foram 40 anos de intensidade, navegando por entre notas musicais e doses nunca calculadas de uísque e cigarros. A cantora das fossas homéricas e das dores de amores insuportáveis usou a melancolia para dizer ao mundo que estava viva. Embora tenha tentado o suicídio, a mulher forte de sentimentos frágeis explicava que foi este mundo, e não ela, que caiu. Maysa manteve-se sempre de pé. Enfrentou o marido que não a queria como cantora e a imprensa de boataria que insistia em julgá-la. Permitiu que todo tipo de sentimento a invadisse, e, dentre eles, o que mais a perseguiu foi a tristeza que emerge no clássico samba-canção “Ouça”, lançado em 1957 pela compositora-intérprete…

“Fim de Caso” (samba-canção, 1959) – Dolores Duran
Dolores Duran derramou com sua poesia feminina todas as lágrimas que caíam de sua alma sofrida de mulher. Derramou o amor que cai e nem sempre reúne forças para se levantar. Aquele amor que se arrepende de não ter sabido amar, de ter se protegido do outro sem perceber que fugia de si, que o outro e ele eram apenas um, que o amor une as diferenças e as transforma em um único e grande sentimento, que chora, magoa e vá embora. E depois quer voltar. O amor castiga porque quer sempre voltar. E você não tem escolha se não aceitá-lo, pois ele baterá em sua porta até que ela se abra. Dolores Duran apela ao tempo que ele volte, para que ela conserte erros do passado em “Fim de Caso”, samba-canção que ela lançou em 1959, cheio de beleza.

“Hoje” (canção, 1968) – Taiguara
Filho do bandoneonista gaúcho Ubirajara Silva e da cantora uruguaia Olga Chalar, o cantor Taiguara nasceu em Montevidéu, no Uruguai, no dia 9 de outubro de 1945, quando seus pais realizavam uma temporada de espetáculos no país sul-americano. Radicado no Brasil, Taiguara chegou a ser considerado o compositor mais censurado pela ditadura militar, que perdurou de 1964 a 1985, com 68 canções proibidas. Ao lado de artistas como Sérgio Ricardo e Gonzaguinha, ele jamais abandonou a militância política ligada às esquerdas…

Em 1968, Taiguara venceu o Festival Universitário de MPB, com a música “Helena, Helena, Helena”, e, no mesmo ano, levou o festival “Brasil Canta no Rio”, com “Modinha”. Outro de seus sucessos foi “Hoje”, utilizada na trilha sonora do filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho. Taiguara morreu em 1996, aos 50 anos, vítima de câncer na bexiga. Entre seus sucessos também estão “Universo no Teu Corpo”, “Teu Sonho Não Acabou” e “Estrada Estreita”…

“Batucando na Mão” (samba, 1968) – Renato Teixeira
A morte de Miriam Batucada resume um dos capítulos mais deprimentes da vida de qualquer pessoa. O fim da existência costuma ser sempre melancólico, mas, no caso da artista, durante vinte dias ninguém percebeu que ela havia morrido. Retrato mais profundo da solidão não há. Esse capítulo final contrasta com a imagem descontraída que Miriam cultivou, e, de quebra, torna premonitório o samba “Batucando na Mão”, de Renato Teixeira, que ela lançou em um compacto, no ano de 1968: “O doutor até já disse/ Que a minha doença é ‘sambice’/ Que mata do coração/ Mas nada disso interessa/ Pois que morte vai ser essa/ Se eu vou fazer batucada/ Na tampa do meu caixão…”, determina.

“Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (marcha-rancho, 1972) – Sérgio Sampaio
Com ritmo alegre e dolente a marcha-rancho “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, de 1972, carrega contrastes em todo andamento. Lançada pelo autor Sérgio Sampaio no VII Festival Internacional da Canção, e finalista do concurso, a música tornou-se emblemática não só pela letra ácida e contestadora, mas, talvez principalmente, em razão do desempenho de Sampaio no palco que, entre outras coisas, simulou um ato sexual com seu violão enquanto cantava: “Eu quero é botar meu bloco na rua/ Brincar, botar pra gemer…”.

Autobiográfica, balizada em versos imprecisos e debochados, a canção anuncia pontos importantes da liberdade sexual que aquela geração almejava. Regravada muitas vezes depois, sempre por nomes ligados à rebeldia e irreverência, como Maria Alcina, a canção nunca perdeu o sentido ou saiu de moda. Prova que o bloco de Sérgio Sampaio ia muito além da luta contra qualquer ditadura, era, sobretudo, um brado de libertação. Ney Matogrosso a regravou no ano de 2019.

“Como Vai Você” (balada, 1972) – Antônio Marcos e Mário Marcos
Roberto Carlos vinha, aos poucos, de descolando do título de ídolo da garotada para se consagrar como o Rei da música brasileira. Um dos principais ativos nesse movimento foi apostar em canções mais maduras, que deixavam para trás o espírito juvenil e rebelde, em busca de declarações de amor capazes de acalentar corações de todas as idades. “Como É Grande o Meu Amor Por Você” destoa do repertório de “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, LP lançado em 1967, exatamente por esse motivo. Já em 1972, ele se valeu de “Como Vai Você”, dos irmãos Antônio Marcos e Mário Marcos. Vanusa também gravou esse clássico associado a Roberto Carlos, que vendeu 700 mil cópias…

“Porto Solidão” (balada, 1980) – Gincko e Zeca Bahia
O cantor Jessé nasceu no dia 25 de abril de 1952, e morreu precocemente em 1993, aos 40 anos de idade, após sofrer um acidente de carro quando se dirigia para um show no Paraná. Sua esposa, que estava grávida de cinco meses, perdeu a filha, mas sobreviveu. Nascido em Niterói, no Rio de Janeiro, o músico iniciou a carreira em 1980, ao ser revelado pelo Festival MPB Shell, da Rede Globo, e logo chamou atenção por sua voz potente e grave. Vencedor na categoria melhor intérprete, gravou o primeiro disco naquele mesmo ano e estourou em todo o Brasil com “Porto Solidão”, o maior sucesso da sua carreira. Ao todo, ele deixou 12 álbuns gravados, sempre com êxito comercial…

“Sangrando” (balada, 1980) – Gonzaguinha
No início da década de 1980, Gonzaguinha passou a morar em Belo Horizonte com sua segunda esposa, Lelete. Desse casamento nasceu a sua caçulinha, Mariana, irmã de Daniel, Fernanda e Amora, filha do relacionamento do cantor com a Frenética Sandra Pêra. Nessa época, ele vivia sua melhor fase e já desfrutava dos sucessos de “Ponto de Interrogação”, “Grito de Alerta” e “Sangrando”.

A balada imortalizada por Simone revelava um desenho autobiográfico e pungente do compositor que não se dizia cantor, mas intérprete de suas emoções. Na letra de “Sangrando”, o intérprete se rendia por inteiro. Começava soltando a voz com um delicado pedido, para depois consentir que a música se apoderasse dele e exprimisse a vida em sua plenitude. “Ponto de Interrogação”, outra pérola de 1980, abordava o sexo de uma maneira até então inédita na MPB, apelando à sensibilidade dos homens.

“Quero Você do Jeito Que Quiser” (balada pop, 2020) – Marília Mendonça, Maiara e Maraisa
Inserida em um meio que galgou posições cada vez mais lucrativas na indústria do entretenimento – o chamado “sertanejo universitário” – Marília Mendonça foi uma das raras compositoras com reconhecido destaque entre seus pares, o que, na música brasileira, sempre representou uma árdua luta que reproduz nosso machismo estrutural. Pioneiras, Dolores Duran, Maysa e Dona Ivone Lara muitas vezes se colocaram a partir da perspectiva masculina. As desbravadoras Rita Lee, Fátima Guedes, Joyce, Angela Ro Ro, Ana Terra, Marina Lima, dentre outras, deram esse salto adiante, que culminou em presenças como as de Adriana Calcanhotto, Karina Buhr, Ana Cañas, Zélia Duncan, etc. etc. Sem mencionar a maestrina Chiquinha Gonzaga, um brasão.

Foto: Museu da Imagem e do Som/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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