Entre vários caminhos, a encruzilhada: o ‘Coração Bifurcado’ de Jards Macalé

*por Raphael Vidigal

“A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados, nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.” Beatriz Sarlo

Diante da impossibilidade, o impossível. É nessa perspectiva que Jards Macalé nos lança com o seu mais novo disco, simbolicamente o 13º de uma trajetória peculiar, marcada pela liberdade na música brasileira, transgredindo, inclusive, os conceitos de popular e erudito. “Amor in Natura”, parceria com o velho companheiro de guerra Capinam, abre os trabalhos com uma sentença que capta bem esse espírito: “o amor pode tudo/o amor não pode nada”. É o paradoxo do poder ilimitado e nulo, que vai se adensar no decorrer das faixas…

“Coração Bifurcado”, que batiza o álbum, chega na sequência com uma batida de candomblé, mas Macalé é mestre em quebrar expectativas, e logo invoca um rock sambado, em sua mistura iconoclasta. Feita com Kiko Dinucci, a canção pega emprestada uma máxima da religião afro: “um amor faz sofrer/dois amor faz chorar”. Afinal, se não há saída, o destino é a encruzilhada, onde Macalé se posiciona. Os caminhos são muitos, ilimitados. “A Arte de Não Morrer”, outra com Capinam, se afirma pela negação. E contrai.

“Vivo dentro de um poema/preso na minha canção/a arte de viver livre/nas grades do coração/(…) a arte de ainda ver/na escuridão das cores”. Os limites estabelecidos são ultrapassados pela dinâmica transgressora, inclusive a própria vida que, se não é concedido domina-la, pode-se evitar o seu contrário. A consciência da limitação e da incapacidade não é sentença de morte, pelo contrário, é justamente essa percepção aguçada que permite ao artista ultrapassar as condições expostas e ampliar a liberdade. A voz de Macalé soa especialmente abafada nessa canção, característica que o aproxima dos cantores de blues, como aquilo que percebemos pela pressão que sofre, lateja.

“Mistérios do Nosso Amor” traz uma orquestração nova para o álbum. A inspiração são os sambas-canções dos anos 1950, década que consagrou Maysa, Dolores Duran, Sylvinha Telles e outras divas do gênero. Para cantar, Maria Bethânia reforça esse ponto em comum, com sua acentuação romântica. Parceria com Ronaldo Bastos, também um nome já clássico da MPB, a senha surge no verso: “você é um sonho infeliz que não pode acabar/(…) e assim nosso amor vai seguindo sem ponto final”. Mais à frente, arremata: “destino é o caminho de tudo que não tem solução”. Impossibilidade, impossível, encruzilhada, tudo junto, mas sob a capa de uma simples dissolução amorosa.

“Grãos de Açúcar”, composta com a poeta Alice Coutinho, talvez realize a melhor síntese desse desejo premente no álbum. Imagens concretas se transformam em metáforas e ganham uma outra realidade, mais pujante. Não é possível escrever uma carta de amor, porque o poeta é água com açúcar, fluido e artificial. A personagem Dindi, recuperada do romance-canção de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, interpretada na década de 1950 por Sylvinha Telles, existe e não existe, está aqui de volta nessa canção, com “barriga, canela, pescoço, vapor”, mas em forma de versos e notas. “As sombras se beijam nas águas do mar”, finaliza Macalé levando o impossível a tocar o chão.

O amor só se consuma em “O Amor Vem da Paz”, porém, ainda assim, “quando o mundo ia desabar”, como assinala o letrista Ronaldo Bastos. Alocada no meio do álbum, a música não deixa de ser uma inflexão de algo que irá se transfigurar mais adiante. Já em seguida, Macalé subverte o tempo ao nos apresentar, hoje, uma canção lançada por Nara Leão em 1966, quando o compositor tinha 23 anos e aspirava “ser Vinicius de Moraes como todo mundo”. Nada mais Vinicius do que “Amo Tanto”. Como nada mais impossível e a impossibilidade do que o Poetinha. “Meu amor, vim te dizer/ Que sem ti não sei viver/ Vem comigo/ Que sem teu amor/ Melhor morrer…”, mimetiza Macalé.

Fitando corpos periféricos da megalópole São Paulo em “A Foto do Amor”, feita com Rodrigo Campos, o músico encontra, novamente, o impalpável colado ao concreto. “Era amor que se via/ Não se discutia”, determina, assolado por uma energia-rap, sem permitir o fim, com uma sequência de eteceteras. “Era amor que se via, nos olhos da tia/ Elizeth batia, mas não rebatia/ Amada de tapas e beijos molhados/ Saliva cortante de pinga/ E boca rasgada de macho”. Depois, “Pra Um Novo Amor Chegar” comporta Guilherme Held e Romulo Fróes na parceria. De cara, o cantor admite a derrota. Constata que um amor precisa naufragar para outro chegar, numa certa beleza cíclica. E que vai além do fim…

Pois essa impossibilidade, a da palavra “amor”, “não é pedra/é chuva de vento”, está além das possibilidades, pertence ao impossível, e se realiza a partir dele. “Pode mentir/ E pode até morrer/ Só não pode o amor matar”. “Simples Assim”, na origem reservada para Gal (1945-2022), agora herdada por Ná Ozzetti, reforça a premissa do álbum com o canto agudo e lânguido da intérprete. Também composta com Romulo Fróes, informa a derrocada de um sonho, representado pelo breu do dia que não nasceu. Mas o cantor não se entrega ao óbvio. “Não desisti/Eu preferi/Amanhecer/(…) Melhor morrer/De amor no fim/ Que o amor morrer/Antes de mim/Amor assim/Simples assim/Não dá”. É a luta ciente da derrota e as impossibilidades que semeiam o impossível.

“Você Vai Rir”, com Clima, ambienta o non-sense no centro do cotidiano. A orquestração estupenda vai do choro ao jazz. Puro deleite. No meio de tudo, matreiro, “ah, o nosso amor”, presente como um copo de vidro, cortante e transparente. Macalé se esbalda e não esconde a satisfação. O derradeiro ato dessa tragédia musical em forma de música popular é quase um mantra. “Cante” determina a prevalência do impossível sobre as possibilidades. Joga os dados no tabuleiro do romance-comezinho como afirmação do gesto, e não de suas consequências. “Cante porque é melhor pro mundo”. Cantar e amar são gestos ilimitados e impossíveis. Cheios de liberdade. A melancolia da voz de Macalé é tragada pela apoteose do arranjo, num encontro de paradoxos. Ou numa encruzilhada?

Foto: Leo Aversa/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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