Os Enamorados

*por Henrique Fagundes (escritor, roteirista e psicólogo)

“Admirável espírito dos moços,
a vida te pertence. Os alvoroços,
as iras e entusiasmos que cultivas
são as rosas do tempo, inquietas, vivas.
Erra e procura e sofre e indaga e ama,
que nas cinzas do amor perdura a flama.” Carlos Drummond de Andrade

Eram outros tempos.

Por certo, Dídimo amava Tereza tanto quanto amava Ana. E amava Ana, tanto quanto Tereza. Amava-as em igual medida, mas por opostas razões. Fazia meses, as visitava semanalmente. Ana, a quem pertenciam as manhãs de domingo, desconhecia a existência de Tereza. Tereza, dos fins de tarde após a missa, que também ignorava quem fosse Ana. Cada qual acreditava-se única com a mesma convicção com que o pensava a outra.

Tereza beirava os trinta. Herdara do pai a pele morena, os olhos vivazes, o nariz adunco e os cabelos pretos que costumava trazer trançados. Para ser qual o turco, só lhe falta o bigode, troçavam seus conterrâneos. Era despeito. Havia sido ela que enxotara os três que propuseram namoro, cobiçosos de seu dote, não de seus afetos. Salvara da falência a loja de aviamentos da família revelando inatas habilidades gerenciais. Voz e pulso firmes, a fala sem curvas, jamais repetia uma ordem; não carecia. Era certa de seus quereres e não fazia concessões. Foi ela quem abordou o caixeiro viajante, breve e direta: Me encontre às seis, atrás da Matriz. Instigado, compareceu, embora acalentasse a lembrança da moça que conhecera na véspera.

Ana mal completara vinte e desde os dezoito trabalhava para seu tio. Os cabelos alourados, os olhos quase translúcidos, a boca bem desenhada e o rosto delicado destoavam da rudeza do restaurante de beira de estrada. Evitava encarar os clientes e corava quando lhe faziam gracejos, não raro, obscenos. O proprietário do estabelecimento vigiava do balcão e vez ou outra enquadrava algum cliente que lhe soasse inoportuno. Mas nunca cogitou preservar a sobrinha dessa exposição, pois não poucos eram os clientes que apenas por causa dela frequentavam o local. Quando Dídimo a viu pela primeira vez, Ana equilibrava a bandeja através do estreito salão esgueirando-se de dois homens que a olhavam com indisfarçada cobiça.

Um desses, aproveitando-se de um momento em que o tio da moça se afastara, segurou-a pelo braço e derramou alguma grosseria ao ouvido. Instintivamente, Dídimo levantou-se em sua defesa, ordenando que o assediador a largasse. Inflando o peito, o inconveniente o chamou para resolverem no braço. Nisso, retornou o tio de Ana que inteirando-se do ocorrido, enxotou o cliente abusado. Em gratidão ao forasteiro, não lhe cobrou a refeição. O gesto de bravura mereceu os olhares e suspiros de Ana: era a primeira vez que um desconhecido saía em sua defesa. A jovem encontrou-se com seu herói, em segredo, tão logo terminou seu turno.

Dividido entre Ana e Tereza, Dídimo não concebia como era possível amar igualmente criaturas tão opostas. Elas, por sua vez, também se apaixonavam por traços contradizentes do rapaz. Tereza se encantava por sua dócil submissão. Ana, pela sua coragem. Assim se passaram quatro meses de encontros às escondidas. Num mesmo domingo, manhã e tarde, fizeram-lhe igual exigência: era preciso publicizar a relação.

Dídimo, plenamente feliz com ambas, não conseguiria decidir-se por uma delas. Torturado pela dúvida, incapaz da escolha, resolveu abrir o jogo. Cartas postas, declarou seu amor por Ana, mas falou-lhe também do que sentia por Tereza e fez juras de amor a esta, não sem depois confessar o que sentia por aquela. E rasgou-se em elogios para cada uma das oponentes.

Tereza crispou-se, berrou ofensas, mandou que ele fosse ao inferno, quis partir-lhe a cara. Ana soluçou inconsolável. Ambas disseram não querer jamais revê-lo. Ambas o reencontraram na semana seguinte, trazendo uma mesma resolução: queriam conhecer-se as rivais.

Ajustou-se o duelo para o outro domingo, ao meio-dia, sob os olhares do anjo barroco, tirante a cupido, que encimava o portal da igreja. Lá se encontraram as oponentes e entre elas Dídimo – coração fendido em duas partes, exatamente iguais, não encontrando medida que fizesse a balança pender para qualquer dos lados. As rivais mediram-se, tendo em mente ainda frescos os adjetivos com que o rapaz pintara uma à outra. Dizem que foi o anjo quem decidiu a querela. Bastou se encararem para que as moças soubessem a veracidade dos atributos com que o namorado comum as figurara.

Apaixonadas, Ana e Tereza fugiram juntas na semana seguinte, deixando para trás a cidadezinha modorrenta e o insípido moço. Pelo que se conta, são completamente felizes até hoje.

Dídimo se casou com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história.

Imagens: Obras de Toulouse-Lautrec.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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