“É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo.” Caio Fernando Abreu
Não sabia ao certo o nome. Um filete comprido, longo, esverdeado, cuja língua arriscava furos na superfície lenta do ar, com duas bolinhas tão velozes quanto o rabo no lugar dos olhos. Alguns o chamavam lagarto, mas a maioria de calango. Era um bicho arredio, que ao menor sinal de ser cutucado rápido se desvencilhava das possíveis mãos ou pernas ou cabos de vassoura. Mas, ao contrário, se o deixassem de lado, se a mesma indiferença demonstrada fosse recíproca, permanecia coalhando ao sol, lento, lerdo, espreguiçado. Numa tranqüilidade assustadora para quem se remoía e martelava os perigos iminentes do mundo e a inexorabilidade da morte. Afinal aquele lagarto ou calango não devia ter pensamentos muito profundos. No entanto, e bota entanto nisto, era profunda a sua inveja, e, até, pasmem, o seu ciúme. Para o lagarto o mundo, embora menos proveitoso, parecia também não exigir muito.
Era uma imagem engraçada. A maior parte do tempo estática, como uma foto, envelhecida, pela textura corporal do réptil, e mais, pelo ar de constrição que exibia. O estoicismo do lagarto parecia dizer que tudo estava no lugar, e que tudo aconteceria no tempo certo, sendo inúteis e absurdos os esforços para modificar a ordem natural do planeta e suas circunstâncias essenciais, tão arraigadas quanto as raízes de batatas ou cenouras presentes naquele ambiente. As quais ele admirava imóvel e para as quais eventualmente furtava um olhar mais atrevido, mas sempre sereno, inóspito, inteiro. Havia a noção de exatidão no corpo do lagarto, na sua medida, em como se acoplava junto às pedras, com o sol lhe iluminando numa cenografia perfeita para aquele espetáculo, do qual sabia todas as falas, todas as deixas, quando arroubar e quando permanecer quieto, somente por instinto, por ser exatamente aquilo para o que fora concebido, sem indagações, suspeitas, escolhas, diretrizes.
Mas algo saía do lugar de vez em quando, muito mais para o espectador que para o protagonista da cena, e quando a imagem ganhava mobilidades de filme é que a tormenta aumentava. Pois se o episódio estático causava certa graça, por certo senso ridículo, de passividade e submissão, mas, sobretudo, pelo caráter insólito da preguiça, o assombro tomava conta no momento em que aquele ser minúsculo, insignificante, lerdo, um filete comprido, mole, longo, esverdeado, exibia a língua viscosa, girava o pescoço para todos os ângulos, e retirava a paz daquele ermo de abandono, onde, ainda assim, o mundo se resumia a movimentos, mesmo que poucos e rápidos, e uma transformação qualquer provocava uma nova ordem, pois nada mais era igual ao instante antes, já não existia mais certa mosca, certa formiga, certo inseto, e, no entanto, tudo restava aos olhos, nesse ambiente pouco nítido, amarelado pelo tempo e a própria poeira, com seu cheiro de terra e textura réptil, tudo restava igual, como antes. E reinava o silêncio do tempo, imponente e invisível, rígido.
Havia uma única forma de compreender a dor: não exigi-la em nada. Restava ser o crítico daquele espetáculo, por não poder ser lagarto. Pois se todo crítico é um frustrado, ainda assim este extrai uma vantagem para si, pois nem todo frustrado termina num crítico. “Sabes o que é construir com labor?” – Pensou. “É o que fazem todas as forças humildes da natureza”, respondeu na seqüência. “Não há nada mais difícil do que nascer, e mais fácil quanto morrer”, continuava, agora assertivamente. “Como pode alguém feito de carne, osso, fibra, com a densidade do ferro, desaparecer como uma bolha de sabão? As perdas, ao contrário da posse, me deram uma incrível liberdade. Minha coragem vem de não ter nada a manter ou a perder”. Sê como um lagarto: lento, comprido, longo. E os medos da solidão se dissiparam em possibilidades. Entreguei-me a um sono leve, mole e gostoso. Minha alma estava em paz, por mais que o corpo se movimentasse.
Raphael Vidigal
Imagens: Obras de Matisse.