O destino das cartas de amor

“O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que refletia outrora tantos risos,
E agora reflete apenas pranto,” Florbela Espanca

"Vênus ao Espelho", do pintor espanhol Diego Velázquez

Com preconceito diz o pai de Maria que moça bonita só estuda para escrever carta ao namorado. Mas não há privilégios nessa categoria de declaração do amor: as feias também. Maria é uma enrustida senhora, pois não se sente ou veste-se como tal. Maria é, ainda, simplória, portanto as vestes não traduzem uma exibição. Maria o é assim: natural. E quantas pessoas são naturais? Tão difícil, umas dores áridas, umas esparsas falas falsas. Que mal assina o nome. Rabisca e também rabisco por semelhante analfabetismo, discípulos da fantasia. Lábios de Maria onde ardem promessas dos amantes que a abandonaram embuchada, farta de prole. Os filhos de Maria, estes estudaram. Mas Maria enxerga nas cartas escritas as cartas não escritas, os pretendentes espantados a espingarda e bombinha, o passado que não se deu por inteiro.

Maria enxerga na falta do estudo, das letras, embora das palavras ela tenha conhecimento, e a catarata aos poucos tome conta de seus olhos azuis. Na cadeira de balanço o único bem dum casebre aos pedaços pequeninos como teta de cabrita comparada à vaca leiteira. As cartas escritas por Maria não puderam ser entregues. Maria escreve. Sim, Maria escreve cartas. Ágata as dita do passado. Tudo o que se passou na boca da menina envergonhada alcança a pena do lápis num ricocheteio para se proteger do frio (como duas moças abandonadas). José Alcântara, rico fazendeiro, homem de estudos, apaixonou-se por Maria. A menina ainda virgem, livre da menstruação e da depravação do corpo, os seios imaturos, a libido grampeada, gostou de ver piscar um olho do rapaz. Achou graça. Achou divertido. Não sabia o que era apaixonar-se. Até hoje não se sabe.

Mas Maria queria brincar, subir em cavalo, montar nas costas peludas do homem com quem zombava, provocando-o: – Lobisomem! Provocava-o mais do que os músculos desnudos supunham. Os escondidos, eretos e abruptos, num clarão de surto a atacaram jogando Maria contra os arbustos. Não era carinho, não foi carinhoso o modo com que o homem, rico José Alcântara, deflorou Ágata, a menina pobre. Para sempre criança pobre, para sempre meneio ignorante, pobre Ágata, paupérrima Maria, refém da infância: mulher no corpo de menina. Não entende nada. Só que urrava, chorava de dor ao se expor o que só no banheiro utilizava para o xixi escorrer amarelo. Agora de bruços, agora deitada, transforma-se no objeto da gula: luxúria: pecado: o orvalho. Pinga sobre a antiga folha erma dum outono em petróleo: nasce o líquido seminal da virulenta arraia. A travessia ondulante e irascível como onda de Cristo, a cruz sobre a cama. Maria hoje um fantasma a me percorrer nessa viagem, ovelha sacrificada: Ágata.

Retrato da infanta Margarida, de Velázquez

Raphael Vidigal

Pinturas: Obras de Diego Velázquez.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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