“como uma folha se dobra com o vento ou uma flor se verga sob a pata do leopardo, entregar-se ao seu poder.” Truman Capote
Dulce Veiga,
as coisas não estão fáceis (ando lendo muito Kafka, daí, acho, que o tom lamentoso…)…trago um sintoma na gaveta (nos arquivos) e tenho encontrado imensa dificuldade em revelar minhas alucinações, especialmente essa doença (pregação, que seja), que é uma coisa que vejo necessidade de FAZER ACONTECER, como um álibi que me permita dedicar mais tempo ao que realmente almejo: sonhos, ou, a magia.
A pressão é grande para que eu desista e volte ao mundo da realidade que tanto me chateia, e tenho tanta vontade de entrar em outros cantos, labirintos espirais, soturnos, mas em certos momentos o sintoma se esgota, quase desiste, pinço uma frase de Tennessee Williams (um dramaturgo enfermo de insônia que lhe afetava o dia todo: sonhava acordado e dormindo – ou seja, não dormia o repouso linear e estrito, mas somente naufragava ares e desembarcava navios nas estrelas):
“Não quero realismo. Quero mágica. Sim, mágica. Tento dar isso às pessoas. Sei que deturpo as coisas! Digo o que deveria ser verdade. Se isso é pecado, castigue-me!”
É só o que peço. A verdade (será que ela inexiste? Qual a diferença entre o existir e os sonhos? O nada? Existe na realidade? E na alucinação?) é que as amarras suspensas no ar, na imaginação, na sugestão (SIMPLES SUSPIRAR) deixam as pessoas perdidas, sem um encosto firme e rígido que lhes dê confiança, convicção, serenidade. Para elas, entender é ultra-importante, e eu utilizo pouquíssimas conjunções com a intenção de ligá-las. Sujos, soltos, abandonados, irrestritos, numa esfera absurda e austera, não temos sentido. Sentido amor, sentido dor, sentido à vida. Não há. Então para que perder tempo (História do Homem) querendo dar vazão, organizar, simbolizar o que por si só e só pó e si a o tempo todo é insuficiente-inexplicável? E se a gente percebe que o mundo é absolutamente irrelevante.
Vejo-me perdido, recolho nuvens no jardim de margaridas. E olha, elas são amarelas, vermelhas, brancas, boninas, mertiolate, de todas as cores! E eu não quero me aproximar com uma lupa para descobrir que são transparentes (fruto da minha morta natureza viva). Pois bem, lembra-lhe Cèzanne? Aquele homem nunca pisou no chão de terra batida, todas as suas sertanias eram impregnadas de falso alarme, mentira deslavada e específica. E é de uma maravilha! Que chega a me causar arrepios (essa sensação tola e aflitiva, será que ela existe?)
O sintoma não está cercado. Nem solto. Porque encontra imensa FALTA DE APOIO. Nem uma madeira de lei, somente algodões desgarrados. Estamos todos sozinhos, perdidos, sem pendores, pêndulos ou hora marcada, é preciso ressaltar, nesse abismo de azul marinho e peixes que flamejam cores como o amarelo ovo. De todos os lados, e eu mesmo chego a desconfiar se é uma doença para ser ‘transformada’. Nem toda varinha mágica resulta em fadas, cães de Hades, caos da manhã bem clara (que comprime toda a rejeição de dentro pra fora), e essa é minha ESPERANÇA.
Mas ao lado de minha desconfiança comigo próprio vem uma vontade absoluta (opaca) de seguir esse tortuoso caminho. É confuso, drástico-dramático, não sei… pois bem, o subjetivo é que nem crias ou criadores, nem os criados, demonstram muito entusiasmo em se envolver-enveredar nisso.
Pois eu lhe digo, antigamente a terra era quadrada. (“Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.” Clarice Lispector) Queimaram as provas. Quem garantirá que todas essas provas de agora não serão uma noite iluminada, queimadas? Destruídas em algum tempo, em outros ângulos, perspectivas sementes. Como diz o Mario Quintana: “A verdade é que a minha atroz função não é resolver e sim propor enigmas”.
Até mesmo cresce a desconfiança incontínua de que os animais irracionais (?) se comportam sobremaneira a pensarmos sermos nós (enganados-iludidos), reles e ingenuamente, seres dominantes. O que configura estratégia repetida vezes usada (suja e esfarrapada) em noivados-casamentos-namoros, de toda a espécie. Ou a mais abundante, em termos de polegar opositor, delas. Nu mínimo.
E já se ouve no rádio interlocutores anunciarem que contrair determinada doença tende a eliminar as rugas. Tende? Ou pende? Ou sonha? É tudo tão vazio e inestático. Tão se movimentando no breu, “dentro do silêncio e do tempo”, como diz o Caio Fernando Abreu, pra rimar. Para fugir desse massacre, talvez um alento.
Mas isso não resolve o meu problema…a exposição do amor pode ser prejudicial, eu sei, (o que faz mal e o Q faz bem?) mas urde a expectativa na busca presencial de alguém que me ajude de alguma maneira nisto. As coisas estão confusas, misturadas, complicadas, silvas. Mas é que eu possuía. Eu possuía uma técnica inviolável. E ela agora se perdeu (abriu-se) com esse sintoma. E por ter sido você, me lavado alguns elogios, talvez eu esteja me agarrando nessa possibilidade de que você, mesmo imersa em várias e com certeza mais urgentes alucinações de sua própria natureza, você, talvez, possa me ajudar.
Vou entender se me disser que é IMPOSSÍVEL (tão bonito, como um sibilo de pássaro ao romper a casca em revoada), tudo bem, eu entendo, faz a arte, é o mais NATURAL, (presa, decapitada, insensível natureza late) inclusive…
Mas não posso deixar de lhe fazer esse pedido ambicioso, afinal me restam poucas (quase nenhuma) alternativas/pessoas/setas/sentidas que acolheram com otimismo minhas alucinações, meus sintomas, minha doença, meu sonho (assim pequenininho, em minúsculas, tão solitário e sozinho rugindo). E a quem reciprocamente, admiro. No caso, você é uma dessas setas, pessoas, alternativas, serestas.
Recorro a você, Dulce, na esperança de que compreendas, e pensando que talvez em algum momento já tenha passado pela mesma barreira de aceitação-intransponibilidade e medo-luta. E mãos se estenderam sinceras para ajudá-la.
Mas ao mesmo sabor do TEMPO, SINTO CERTA (ou errada) dificuldade em lançar-me ao abismo, mar do infinito, pensando se não terei privilégios por certa insistência bruta numa loucura rasa, encoberto por uma SOMBRA de DÚVIDA ETERNA sobre o meu suposto “sintoma”.
Sem pretensões, pelo contrário, na verdade (de novo essa perseguição arrogante) guio-me quase somente por intenções-sugestivas capazes de digerir com receio, coragem e valentia todas essas estrelas soltas qual pipas sem linhas (“Uma linha pode ser direita ou uma rua. Mas o coração de um ser humano?” Tennessee Williams), largadas e entregues à sorte. Sem rumo ou destino.
Tento, por assim dizer-sussurrar-investir-soprar numa nova direção, nova (maybe arcaica) linguagem, onde não precise ser dito tudo. Fique assim num escuro a ANTI NARRATIVA DOS SONHOS, DO MUNDO, DO CIRCO PEGANDO FOGO, COM ÁGUA AO ENLACE, ALCANCE DE QUEM QUISER SEGURÁ-LA ENTRE DEDOS TORTOS. Tão macios ao agarrar o incompreensível-livre. É isso o que viemos-vemos fazendo. Tão entregues ao norte, ao mote, relegados a um plano de afastada relevância, qual relva em jardins de ouro e penas.
E a tua recepção calorosa ao meu sintoma foi como um sopro, um alento para uma chama que estava quase apagada, num desânimo que me fazia querer largar dessa desesperadora perna esgarçada do sonho. Mas voltemos aos atos, como-comum ao teatro:
“Jaguadarte
Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.” Lewis Carroll
Que estripulia fantástica desse desafiador dos espelhos mágicos! Volta-me a ânsia de equilibrar-me em cordas feitas do mel e do vento. Assim mesmo, meio provisório, improviso de YAMANDU COSTA, Mergulhador de CORDAS INÓCUAS, sem infringir nada conquanto tudo onde pulse a trombeta da FANTASIA MÁGICA E SONHADORA. Pra que entender a vida se podemos senti-la? Pra que querer comprová-la quando podemos aguardá-la puxando manilhas aos dentes como um cão que lambuza a brisa na cara!
Uma pequena observação:
Me falta a calma dos Grandes Poetas.
E o orgulho dos Grandes Artistas.
Estoy más pra dublê
De escritor-paráfrase!
Tópicos para uma obra:
Reduzido: ao essencial
Conferindo: tema de cristal
Minha Missa
Luba
Cheia de
Idiossincrasias Alteradas
Dulce, não se constranja, nem se sacrifique demais por mim. É tudo o que peço, imploro, cantar em seu ouvido. Mas não se sinta obrigada. Nesse mundo de irrealidades e contrastes, não existem obrigações, somente ilusões. Portanto, SINTA-SE. Sente-se à vontade, para recusar, mesmo que a priore, recolher essa GARRAFFA DE SOCORRO PERDIDA. Eu estarei sempre distante, mesmo na presença ou nas entranhas, estranhas profundezas de um a mar sem fim.
Querelle,
Saiba, entendo seu desassossego…
Eu mesma estou assim… Ontem, cantava à Dorival Caymmi que tenho vontade de espirrar a pimenta que me aflige e dedicar-me a algo como paisagismo, refletindo paisagens menos dolorosas, doridas.
Cantar é um esforço. Você não imagina. A ponto de arrebentar minhas cordas vocais, pois não tive tempo de trocar os comprimidos azuis pelos litros de uísque. Ou não ir regar as plantas, e deixar para as ervas daninhas, que se esgueiram e comem as suas beiradas indefesas.
E no final, plantas mortas, vozes no fio do desgosto e aplausos. Apupos e vaias trariam mais dignidade à minha vida de revolver a lama ao encontro de frutíferas inspirações.
Hoje, agora há pouco, já que estou de licença médica, depois de dois dias anestesiada e em estado de choque, fui visitar uma cadelinha…
Eu mesma a resgatei da rua, dei banho, escovei os dentes, coloquei numa clínica de reabilitação (parecida com a que freqüento há quase 40 anos); ainda assim, sou uma mulher conservada, dizem-me os olhos pútridos de passados suntuosos; e disse, balbuciei para a moça que gostaria de cuidar de bichos.
Pois bem, você vê, não estou lendo Kafka (há um tempo perdi essa visão que dizem da vida, de poder enxergar com os olhos, e mesmo o braile me cansa, braços muito machucados por seringas constantes), mas meu Tom (sem Zé, sem Jobim), é igualmente lamentoso… Vejo (ironia) tanta injustiça ao meu redor, nas construções as picaretas sempre em punho, e são os que recebem elogios rasgados, sendo que do presente nada sabem. Sentem. Pressentem.
Apenas latem e miam tão falsamente um barulho que envergonha os animais que portam com tanta graça e realeza divina, digna, ingênua, pura esse som que ressoa em meus ouvidos que só ouvem música, só falam música, tocam música, vêem música.
Querelle, sinto-me farta da música. Música de fadas, duendes, bestas, gregas mitologias só me trouxeram sofrimento. Fantasio-me todas as noites com coroas regadas de pérolas e perfumes das flores comidas subindo às orelhas. Mas já não sinto cheiros. Tornei-me presa solta de mim mesma. Como esse mundo de fantasia e realidade que tudo deglute, sem dizer porque, sem trazer desprezo. Impassível e sereno.
Relegando-nos tudo mais que não seja abandono. Sim, estamos soltos. Sim, estamos livres. Tentamo-nos agarrar, denominar regras, condutas a serem seguidas. E essa é a grande tristeza. Ao fim, ao começo, ao meio, somos conduzidos para o mesmo grande pequeno estreito largo buraco negro onde mora o Lagarto (Monstro!) do Lago Ness.
Nem pense nisso, meu bom. Foram todos embora. Uns embarcaram para a Europa, outros suicidaram, alguns mantém sítios no interior de Minas, como, por exemplo, a Adélia Prado. Todos chegaram, partiram, quebraram, ao NADA. Tão INABSOLUTO quanto uma bebida borbulhante de gim regida por uma faca. Esqueça essa faca entre os dentes, solte? Do que adianta? Prenda? Acreditas, por acaso, em alguma lenda urbana, rural suburbana?
É por isso que lhe presenteio com Paulo Moura. Ouça o seu saxofone, e durma. Mergulhe no mundo de sonhos, sim, mergulhe. Mas não pense em tirar de lá nenhuma garrafa de socorro, porque imersos em tinta nanquim, movediça e soturna, quanto mais nos movimentamos, mais afundamos.
Você deve conhecer o Rimbaud, e a última vez que nos correspondemos ele estava num desânimo tal com a vida que precisei ser novamente internada, às pressas, nova crise de nervos, estados de choque quem sempre voltam. De uma maneira ou de outra, essas encruzilhadas nos ricocheteiam e jogam-nos de volta à mesa, sem cartas (a propósito de Cèzzane, tem uma pintura muita bonita a esse respeito, que nunca VI é bem verdade, mas isso não vem ao nosso caso, posso SENTI-LA, como me pedes de passagem no final desta carta).
Se posso te consolar, é dizer que entendo seu DESAPONTAMENTO, e que é normal os lápis afiados perderem as mãos, os pés, os membros, verem-se como uma caixa de mágico que desintegrou sua estrutura de madeira óssea, mas mantém o olho invisível ligado no espaço.
Compartilhamos. Tenho sofridas convulsões resultantes de uma simples maneira, mania: VONTADE DE CHORAR. Sinto que não há solução. Nem perguntas atingidas ou respostas precípuas. Não posso lhe supurar promessas, pois como vês minhas feridas transcendem à pele e a luz. Também não devo incutir ao seu espírito viajante esperanças, muitos náufragos nesse mar de nosso Deus, o seu deves ser mais um. Eu mesma já me perdi dentr’eles, “como me perco no coração de alguns meninos”, diria García Lorca.
Eu mesma, essa Dulce Veiga quebrada, exaurida, com idade para ser tua mãe, caco de vidro que já nem raspa o pé de quem em mim pesa, pisa, tentei dedicar-me a traduções de Rilke. Desastre. Pensei em abrir uma cafeteria literária, desesperei-me com tanta angústia refletida nos holofotes de fora que se confundiam para dentro. Mas isso, se acontecer, não lança a garrafa ao mar, pode ser que o socorro venha, pode ser que o azul marinho de peixes flamejantes engulam sem dentes seu amarelo ovo: ouro.
Pode ser….
Suspire, suspire sempre.
Sofregue, sofregue e arrebente quantos forem desnecessários ventres.
Segue teu impulso;
Soergue lama, mas sibile somente o que teu coração sente, mesmo que
Seja e haverá de ser INÚTIL COMPLETA MENTE.
Raphael Vidigal
Imagens: pintura “Portrait of Ralph McWilliams”, de Paul Cadmus; e foto de Marilyn Monroe.
Publicado no blog “O Ovo Apunhalado” em 21/11/2011.
2 Comentários
Raphael,
Seus contos são bárbaros, impactantes!!!
Você tem estilo próprio, realmente gosto
muito dos seus fantásticos contos.
Beijos encantados,
escrito garrafa no mar e tem uma imagem de um cara deitado numa escada