O canto esfumaçado e grave de Cláudia Savaget

*por Raphael Vidigal

“Às vezes a vida é curta demais para a eternidade dos sentimentos.” Rainer Werner Fassbinder

É uma consolação pensar que em algum lugar seremos eternos. A luz fixa a imagem que, no entanto, logo se desvanece, como se uma névoa espessa coibisse o ímpeto do sol. Talvez estejamos num filme de Antonioni, frequentemente perseguidos por essas imagens, com a eterna angustiada Monica Vitti no papel principal. Ela tem os olhos trêmulos que seguem a fumaça do cigarro de Nora Ney, na capa do LP “ninguém me ama”, de 1960, onde a cantora, com expressão resignada, é parcialmente iluminada pela luz bruxuleante de um poste de rua, alheia ao casal de namorados. “Não tenho um disco da Nora Ney. Gostava do grave da voz, mas nunca parei para escutar”.

Do outro lado da linha telefônica, Cláudia Savaget também está alheia à influência da cantora da era de ouro do rádio em seu estilo levemente mórbido, francamente soturno. Na capa do primeiro LP, a palavra “pacto” é destacada de seu corpo-verbal, numa artimanha entre cores e espaço. “Impacto” foi lançado em 1974, de forma mais ou menos caseira. Hoje uma raridade, o LP virou moda entre colecionadores, e chegou a ser vendido por R$ 8 mil numa plataforma. Cláudia não lembra mais quem tirou as fotos do encarte, e promete perguntar para a irmã, que mantém um exemplar em casa.

No retrato, de perfil, seu rosto aparece multiplicado, como se tivesse sido desenhado a lápis, em preto & branco. Com a boca entreaberta, ela olha para baixo, e fita algo que não vemos, só imaginamos. Em “Blow-Up”, de Antonioni, uma fotografia dá o mote para o cineasta contestar a validade das imagens, a rigidez da realidade. Diante de um espelho, qual imagem está menos fixada? Novamente uma névoa cobre tudo. Cláudia nasceu no dia 1º de julho de 1948.

A gravidade de seu canto não vem apenas das cordas vocais, que imprimem espessura a tudo que ela canta. A canção torna-se encorpada. As palavras adquirem massa, peso, largura. Se vez por outra sussurra, ela não hesita em comprimir as sílabas para que elas recebam densidade, numa espécie de drama sóbrio, distanciado. A comezinha dor-de-amor do fim-de-caso está ali para realçar as nuances da tragédia humana, como na impressionante “Cobaias”, de Hermínio Bello de Carvalho e Maurício Tapajós, apresentada ao público em “Samambaias”, de 1978, seu segundo álbum, o primeiro profissional. O som de órgão, com tudo o que ele tem de sinistro, tenciona o ar.

“Você vai se aborrecer/ você vai me azucrinar/ e eu não vou deixar você dormir às tardes/ você vai ser meu amigo/ e eu vou ser seu inimigo/ e vou puxar teus lençóis/ desarrumar teus lençóis/ e te despertar num insulto/ na raiva, no tapa, no grito/ e vou rabiscar teu nome/ pelos papéis da memória/ e vou lamber tua boca/ feito um gato esfomeado/ e feito duas cobaias/ a vida vai nos matar”.

A imagem da capa é outro desenho de um retrato de Cláudia, dessa vez colorido, entre folhas de samambaias que referenciam o batismo do disco. Cláudia usa um vestido florido, seu olhar anda perdido, como quem olha e não vê, mirando um horizonte impossível. A faixa-título, também de Hermínio e Tapajós, reveste de estranheza o cenário e dá a dica do que vem por aí. O gosto pelo insólito parece guiar Cláudia. Algo de anacrônico permanece durante a faixa, não tanto pela letra que fala de samambaias e caramanchões quanto pela interpretação grave da cantora. Afinal, se ela é um desenho, apenas o reflexo de uma imagem, a qual tempo pertence? Enigma e mistério.

Em “Soneto da Pré-esperança”, ainda do primeiro disco, Cláudia cantava: “da tortura abriu-se a flor do sangue/ na tristura achou-se a dor do pranto/ da secura inchou-se a cor do mangue/ na ternura encheu-se o amor de espanto/ da brancura inflou-se a flor do medo/ na nervura entrou-se a dor de dentro”. É como se sentimentos abstratos encontrassem abrigo no corpo feito de nervo e carne. O medo transmuta-se em osso, através da gravidade ambígua da voz da intérprete, que ressoa metalicamente, como ferro atingido por uma haste. Uma música dura, que não romantiza a realidade, mas se estende além dela.

A abnegada personagem é acompanhada por uma nuvem de desamparo. Cláudia começou cantando no “Clube 85”, tendo a companhia de um piano, baixo e bateria. Em Petrópolis, ela já tinha algum contato com a música. Localizada numa parte alta, encoberta por árvores, a região é conhecida pela neblina. Em casa, a mãe gostava de ouvir Silvio Caldas, Elizeth Cardoso e música americana, principalmente Frank Sinatra. Cláudia teve um namorado que a aplicou no blues. Por conta disso, aprendeu a cantar em inglês. Já morando no Rio, despertou para a bossa nova. Não chegou a ficar amiga, mas se encontrava habitualmente com futuros astros da MPB, como Edu Lobo, Chico Buarque e Francis Hime.

O repertório desses primeiros anos tinha a marca da turma de João Gilberto e companhia. Até que ela conheceu o Galo Preto, grupo de choro com quem começou junto na carreira noturna dos bares e botequins, e participou do Projeto Pixinguinha, que visava dar oportunidade a novos artistas e resgatar veteranos. A estreia foi com o saxofonista Paulo Moura, versado na linguagem do jazz e do choro. Com Marília Medalha, ela subiu ao palco do Teatro Opinião, em 1976. Em 1968, atores do espetáculo “Roda Viva”, de Chico Buarque, haviam sido espancados por agentes da ditadura militar. O clima era de terror. Cláudia teve uma irmã presa e exilada pelo regime. Na última faixa de “Samambaias”, ela cantava “Maninha”, de Chico, para homenageá-la.

“Foi uma época braba, mas trabalhamos muito. Para a música, apesar de tudo ou por isso mesmo, foi um momento muito rico. Cansei de ir à polícia federal levar letra de música pra saber se podia cantar”. A instituição oficial da censura, em 1968, com o AI-5, levou Chico Buarque a adotar o famoso pseudônimo Julinho da Adelaide, e a gravar um disco só com músicas de outros autores, tamanho o estigma com o seu nome. Taiguara e Gonzaguinha viraram recordistas, verdadeiros campeões entre os mais censurados.

“Era uma ideologia dos militares, que fizeram aquele negócio horroroso, torturavam e matavam por qualquer motivo, e os estudantes se revoltaram. Não vejo paralelos com agora. Hoje em dia é o fascismo escrachado. O fato de ter existido uma pessoa como Bolsonaro na presidência da República mostra o crescimento do fascismo no mundo todo. Acho que o que temos agora é bem pior do que antes, pra falar a verdade”, desabafa Cláudia.

Seus discos foram impactados por esse cenário sombrio, mas também iluminados por presenças como a de Cartola, que ela conheceu nas rodas de samba e choro do Galo Preto. “Modéstia à parte, ele gostava muito de mim”. A afirmação pode ser conferida em depoimentos do próprio Cartola, durante as turnês do Projeto Pixinguinha, que ainda contavam com Carlinhos Vergueiro.

De Cartola, a cantora ganhou duas músicas inéditas, e passou a se concentrar nas canções menos batidas de uma obra consagrada pelo tempo. “O Que É Feito de Você” é uma dessas pérolas que ela lapidou, no obscuro disco de 1985, gravado após um hiato de seis anos. E ainda registrou a comovente “Interroguei uma Rosa”, tão intrigante quanto a clássica “As Rosas Não Falam”.

Antes, em 1979, deu voz a “Mordida ou Beijo”, versos de “Sofrer”, de Paulinho da Viola e Capinam, obviamente presente no disco. Pela primeira vez, Cláudia aparece na capa num retrato autêntico, e olha pra frente, encarando o interlocutor. Ainda assim, há algo de indefinido nesse olhar, incapaz de se concentrar num único objeto, buscando as infinitas partes de um mosaico. A expressão opaca, triste, tinge a paisagem com sua cor outonal, em tom pastel.

Na penumbra, o mistério não se desvela. Temos acesso apenas a uma fresta. Enquanto, no interior escuro e frio, protegido pelas paredes impermeáveis e estéreis de um ambiente hospitalar, pulsa a carne de um céu sem cabides para pôr chapéu, como Cláudia canta em “Cabides”, de 1974. Quando gravou “Aves Daninhas”, em 1954, vinte anos antes, Nora Ney praticamente recitou, escandindo as sílabas: “Já não chegam essas mágoas tão minhas/ A chorar nossa separação/ Ainda vêm essas aves daninhas/ Beliscando meu coração”.

Ainda em “Mordida ou Beijo”, Cláudia interpreta “A Vida Não Vale Nada”, uma surpresa, de Grande Otelo, mais conhecido pela comédia nas chanchadas. Os dois estiveram juntos no Projeto Vitrine, com Otelo ciceroneando Cláudia, que também se dava com Nelson Sargento, bamba de respeito e de quem gravou “A Felicidade Se Foi”, no álbum “Encanto da Paisagem”, de 1986.

“Fui parando, ninguém parou comigo. Tive uma oportunidade de cantar no ‘Fantástico’ e não gostei do jeito como fui tratada. De repente, não tinha mais onde cantar. Talvez a culpa seja minha, eu que seja difícil. Eu não faria qualquer coisa só pra aparecer. Não gosto de me apresentar em bar. Acho um absurdo a pessoa cantando e o garçom passando, todo mundo conversando. Também fui me decepcionando muito e parei de correr atrás. Casei, fui cuidar de filhos. No final, me desencantei”.

Cláudia ainda canta. Mesmo no chuveiro. Adora ir ao cinema à tarde, assistir o novo Spielberg sem o marido Luiz Otávio Braga, músico e compositor de lindas canções que ela gravou, sem muita paciência para filmes. Ela também não perdeu o recente show de Chico Buarque e a última peça de Antônio Fagundes na capital carioca. No de Milton, não conseguiu ir, porque era muito longe de sua casa. Detesta o que passa na TV e toca nas rádios atualmente, “essa porcaria de sertanejo universitário e pagode”.

Em 2004, ela tentou retomar a carreira com recursos próprios, e com a ajuda de amigos instrumentistas que tocaram de graça lançou “Caminhando”. “A Felicidade Perdeu Seu Endereço”, de Pedro Caetano e Claudionor Cruz, surge em sua melhor versão desde Orlando Silva, que a lançou em 1940.

O canto segue com os “sons que a noite traz no peito”, como ela anunciava em “Amor em Desmazelo”, do disco inaugural dessa trajetória. Bosques de abetos retorcidos recebem uma luz nublada pela densidade do ambiente pálido. A vida parece inócua diante da morte. Somos jogados a um lugar pantanoso, talvez um filme de Antonioni, com os lamentos de carpideiras ao longe.

A melancolia de uma voz de luto, resignada, coloca em primeiro plano esse canto esfumaçado e grave, feito uma “ave noturna e rastejante” da “Madrugada Celeste”, também do primeiro disco, que se acopla a esse futuro sem depender de presente ou passado. Bruma. Neblina. Mormaço. Um gosto pelo insólito. A eternidade está gravada nas palavras que se desfazem, pelo gesto de quem sopra a fumaça do café, com aquela borra pregada ao fundo. “Cantar é uma coisa muito pessoal e solitária”.

Fotos: Arquivo pessoal/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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