O Baile, um filme apaixonante de Ettore Scola

“E de repente o silêncio,
Com os passos da ilusão
Perseguem a criança-sonho
Pelas terras da invenção,
Falando a seres bizarros…
Uma verdade, outra não.” Lewis Carroll

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O vento soprou à porta uma confissão tímida. Esta se abriu na hora, desqualificando a presença das janelas e os outros indiscretos hóspedes: cadeiras, torneira, copos; acomodados preguiçosamente ao bar. À reação inesperada o vento embaralhou-se, e o crescimento da vergonha tomou-o por vermelhidão, tosse, engasgo e finalmente o salto. Como para impedir o tombo a porta lançou-se ao garçom, e ordenou: toque as músicas do baile.

Surpreso, mas nem tanto, com o fato; afinal há muito adormeciam vento, porta, cadeira, torneira, copos; o garçom repetiu o gesto regido pelo automatismo inexistente nos tempos de antes. Os tempos de antes, então, retornaram, com o vigor e a força de quem espera, em hibernação forçada, um novo chamado. À frente do esquadrão vinha o espelho, pela nítida determinação de alcançar o melhor lugar para apreciar, bem de perto, o baile.

Logo em seguida caíram plumas dum vestido verde-escuro, apoiando-se na bengala vinha o chapéu, em estrita pose, como quem diz, “cruzo-lhe as pernas e disparo uma cantada”, e bem ao longe, último da fila, ouvia-se, antes de vê-los, toda a afobação dos sapatos. É que os sapatos, mesmo no nível de baixo, foram os que mais sentiram a falta das músicas do baile, igualmente as sandálias, sendo-lhes par perfeito, como explicaram em demora e detalhes.

Meros adereços, quando já tocavam as músicas do baile, começaram a chegar com atraso, e despidos de qualquer recato. Não lhes importava a continuação do baile, os passos, o respeito ao bom costume e aos modos. Eram de moda, variavam de boca em boca, orelha para orelha, unha e unha. Escolheram livres de argumentos onde espraiar-se: os brincos de pérolas, os colares de esmeraldas, as penas de aves raras, os batons de inúmeras colorações.

Mas não havia chegado ao ápice: o baile. Houve, por sugestão do dono da casa, cujo lucro era o lema prioritário, a ideia de encher os copos, vazios e desestimulados, e estes, finalmente grávidos, passaram de mão em mão, punho em punho, entre gorjetas e gravatas. Não tardou, e teve início o tumulto: pontapés, socos, aviões, bombas. Recolheram-se, juntos e solitários, os convidados, ao lugar de início.

Somente o casal de velhinhos, a porta e o vento, permaneceu, ao som da música do baile. Inclusive o silêncio mútuo fora ignorado.

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Raphael Vidigal

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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