O amadurecimento da existência

“Mais tarde, talvez, algum intelecto surgirá para reduzir minhas fantasmagorias a lugares-comuns – alguma inteligência mais calma, mais lógica, muito menos excitável que a minha; e esta perceberá, nas circunstâncias que descrevo com espanto, nada mais que uma sucessão ordinária de causas e efeitos muito naturais.” Edgar Allan Poe

Miró

“- Você se lembra quando percebeu que a tua vida acaba? Que a morte vem um dia ao teu encontro? Qual a data exata? Conte-nos em detalhes”.

O homem sem nenhum futuro atravessa a rua. Predestinado à morte, como teus pares, foi diagnosticado, há duas semanas, com uma doença rara. Fato este, por si só, altera a conjunção disposta. Um homem condenado à morte difere do homem destituído de futuro. Pois o primeiro elabora planos, metas, fantasias, sonhos. O segundo, por conseqüência, se irá prostrar à gratuita espera do inevitável. No caso exposto, surpreendentemente, houve o contrário.

Recolheu-se o homem sem nenhum futuro, enquanto atravessava a rua, para o mais próximo laboratório. Colocaram-lhe sobre nariz e boca, buscando a preservação dos saudáveis, uma máscara de higiene branca. Doravante, o mesmo não apresentou ressalvas, resistência ou restrições. Como era de se esperar, caminhou-se o carro atrás dos bois, e por breves segundos ouviu-se apenas o puxar de fôlego e a tranquila respiração.

Então se deu no intervalo de um espirro forte o acontecimento. Anunciou o homem sem nenhum futuro, do alto de sua verve catalítica e amparado sobre balões de oxigênio e ampolas o absurdo: “- desde a revelação de estar doente, sinto fruir em mim o profundo amadurecimento da existência”. Por hora prestaram-se os cientistas de plantão a relegar a estapafúrdia frase a uma qualquer alucinação.

Concordaram entre olhares, e esperaram, com calma, o surto chegar ao fim. Rebolando o dedo indicador num copo plástico de café passado, o segurança atentou aos responsáveis. A irreverente criatura tentava desprender-se, de fato, do destino trágico. E reafirmava, sem intervalos, a percepção madura da existência a crescer em si a partir da custosa revelação. Intervieram, nesse momento, os cães de guarda.

As primeiras ordens foram no sentido de arrancar do homem sem nenhum futuro apenas as esperanças, para na seqüência as objeções dispararem-se ao afeto por ideais, parentes próximos e amores remotos como a possibilidade de uma existência madura frente àquele homem sem nenhum futuro. Os primeiros sinais de indiscrição somente foram notados com o auxílio da lupa, oferecida de bom grado pelo segurança.

A esperança havia sido realmente arrancada das pernas daquele homem, e a boca dos cães de guarda, em sangue, não permitia dúvida. Alguns pedaços de afeto esmigalhavam-se continuamente das mãos envelhecidas daquele homem, explicada em razão da forte capacidade regenerativa de tais adereços. Mas o que mais intrigava cientistas, segurança e cães, todos à espera, no laboratório, da queda do homem sem nenhum futuro, era o brilho.

Não tiveram êxito lanças, os pregos, as correntes, os mendigos, as manilhas, os doentes: todos conclamados para desestimular o homem sem nenhum futuro – fosse por força ou manha, verdade ou farsa – a persistir na loucura à qual, carinhosamente, referia-se como “amadurecimento da existência”. Por fim, enfiaram no ventre do homem sem nenhum futuro, que então acudiu desesperadamente, o útero de uma morta.

A partir daquele momento havia, para o homem sem nenhum futuro, a incumbência de uma missão. A alegria dispersou-se de sua face como pombos espantados por vassouras.

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Raphael Vidigal

Pinturas: obras de Joan Miró.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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