*por Raphael Vidigal Aroeira
“o relógio não é mais justo do que o ventre.” Rabelais
Um dos trunfos do programa “Os Trapalhões”, que ficou no ar de 1977 a 1993 com quadros inéditos, além de um sem número de filmes, é que os personagens interpretavam a si próprios. O protagonista Renato Aragão era, de fato, o cearense, retirante nordestino na cidade grande.
Dedé Santana, o suburbano carioca. Mauro Gonçalves, o Zacarias, o único com formação de ator através do rádio, sugeria piadas de homossexualidade, e não raro usava vestimentas, gestos e vozes femininas e infantilizadas. E, Mussum, dava vida ao sambista do morro.
Paixões. Se Didi e Dedé formaram seu humor, principalmente, através do circo, e tinham uma veia prioritariamente espontânea e de improviso, mais ainda se pode dizer desta naturalidade em Antônio Carlos Gomes. O gosto pelo samba, pela bebida, pelos dizeres invocados e a paixão pelo Flamengo eram reais.
Mussum vivia na tela o que vivia nos palcos de asfalto, nas mesas de bar e nas arquibancadas. O próprio apelido sugeria uma maneira lisa e escorregadia de escapar de enrascadas, característica do peixe que inspirou Grande Otelo a batizá-lo. Nascido no dia 7 de abril de 1941, no Rio de Janeiro, ele morreu em São Paulo no dia 29 de julho de 1994, aos 53 anos, após um transplante de coração, mas, como Mussum, estaria eternizado na memória dos brasileiros.
Estrelato. Quando Wilton Franco o convidou para participar do programa, ao vê-lo numa boate, Mussum estava vivendo como gostava. Tomando “mé”, cantando, brincando e tocando reco-reco com seu conjunto musical, Os Originais do Samba, cujo repertório dava conta de sucessos históricos do gênero e estendia os braços ao balanço inovador de Jorge Benjor.
Na hora, ele recusou a empreitada porque considerava que “pintar a cara”, algo comum na arte cênica, “não era coisa de homem”. Mas Dedé o convenceu e o resto já está na história. Mas uma história que ainda precisa ser mais bem contada é a das músicas interpretadas pelo “Mumu da Mangueira”, como ele gostava de se vangloriar!
“Ta-Hi [Pra você gostar de mim]” (marchinha, 1930) – Joubert de Carvalho
Na pacata cidadezinha de Uberaba, o menino Joubert de Carvalho logo se engraçava quando vi ressoar o som da banda, no que corria de pijama e tudo atrás da mesma. Inicialmente, o pai era contra a investida do filho, pois achava que desviaria a atenção da medicina. Só que os editores passaram a comprar cada vez mais as músicas de Joubert e aumentar o valor dos pagamentos. Enquanto a canção ‘Príncipe’ tornou-se a primeira brasileira gravada no exterior, ‘Ta-Hi’ virou uma febre nacional.
A marchinha lançada por Carmen Miranda, intitulada a princípio ‘Pra você gostar de mim’, caiu tanto no gosto do povo que este se viu no direito inclusive de trocar o seu nome de batismo. Nunca houve um filho adotivo carregado com tanto fervor e entusiasmo. E olha que a marchinha nem era o ritmo preferido de Joubert de Carvalho, assumido apreciador de seresta e música clássica. Mas ‘Ta-Hi’ era irresistível, e ainda é. Os Originais do Samba a gravaram em 1978.
“Olha o Padilha!” (samba, 1952) – Moreira da Silva, Ferreira Gomes e Bruno Gomes
Durante a década de 1980, Moreira da Silva foi socorrer o músico Jards Macalé, que excursionava com ele e acabou detido pela polícia. A encrenca rendeu a única parceria da dupla, batizada de “Tira os Óculos e Recolhe o Homem”. Pois no samba “Olha o Padilha!”, Moreira da Silva brinca com a fama pra lá de negativa de certo delegado, que teria realmente existido. A música foi composta em 1952, ao lado de Ferreira Gomes e Bruno Gomes, e aborda, como de costume, as asperezas vividas no cotidiano do morro, sempre com muito bom humor. E se tornou um dos maiores sucessos da carreira do cantor. E essa música foi regravada pelos Originais do Samba com Moreira e Mussum.
“As Mariposas” (samba, 1955) – Adoniran Barbosa
Típico compositor paulistano, identificado com o linguajar da terra, Adoniran Barbosa se valeu da maneira oral de pronunciar as palavras para compor o samba “As Mariposas”, samba composto em 1955, e um dos maiores sucessos de toda a sua carreira, tanto que foi regravado com o Quarteto Talismã. A gravação original ficou a cargo de outro grupo icônico na carreira de Adoniran, Os Demônios da Garoa. Os Originais do Samba, ainda com Mussum, também forneceram a sua versão para essa composição divertida com lirismo e malícia.
“Sei Lá Mangueira” (samba, 1968) – Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho
Até hoje há fanáticos que não perdoam o fato de Paulinho da Viola, portelense de coração, ter criado a melodia para uma das canções mais emblemáticas em saudação à Mangueira, muito embora ele tenha feito, em seguida, “Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida” para a Portela. Hermínio Bello de Carvalho escreveu a letra de “Sei Lá Mangueira” logo após a sua primeira visita ao morro, inebriado com o que havia visto na companhia de Cartola e Carlos Cachaça. Lançada por Elizeth Cardoso em 1968, a música foi inscrita no IV Festival de Música Brasileira da Record, quando foi defendida por Elza Soares. Os Originais do Samba também concederam a sua animada versão, em 1969.
“Cadê, Teresa?” (samba-rock, 1969) – Jorge Ben Jor
A batida inventada por Jorge Benjor atingiu seu auge num dos melhores e mais populares álbuns de sua carreira. Lançado em 1969, o disco em que era acompanhado pelo Trio Mocotó trouxe vários sucessos, entre eles “Cadê, Teresa?”, música que traça uma história de amor, tendo como pano de fundo o samba do morro. “Cadê, Teresa? Onde anda minha Teresa? Teresa foi ao samba lá no morro e não me avisou, será que arrumou outro crioulo, pois ainda não voltou…”. Esta música seria regravada pelo grupo Os Originais do Samba.
“A Corda e a Caçamba” (samba, 1972) – Adeílton Alves e Délcio Carvalho
“Esperanças Perdidas” é um desses sambas rebatizados pela sabedoria popular. Assim nomeado pela dupla de compositores formada por Adeílton Alves e Délcio Carvalho, ele ganhou, na boca do povo, o nome de “A Corda e a Caçamba”, graças a seu refrão envolvente, sublinhado por uma bateria típica de escola de samba, que prepara terreno para o apogeu da folia carnavalesca. A música foi lançada, em 1972, pelo conjunto Os Originais do Samba, que ainda contava com o comediante Mussum, sucesso do quarteto Os Trapalhões.
“Do Lado Direito da Rua Direita” (samba, 1972) – Luís Carlos e Chiquinho
Antes que o sucesso estrondoso com o grupo “Os Trapalhões” impedisse Mussum de seguir a sua carreira na música, ele participou de um dos grandes hits do grupo Os Originais do Samba, lançado em 1972. O samba “Do Lado Direito da Rua Direita”, parceria da dupla formada por Luís Carlos e Chiquinho, pertence ao rol dos sambas que se tornaram clássicos da música brasileira, graças à interpretação cheia de suingue deste grupo que fez história na MPB. E a letra, singela, preparava o terreno para que o conjunto se firmasse na cena.
“Tragédia no Fundo do Mar” (samba, 1974) – Ibrain e Zeré
Em 1981, Beth Carvalho revelou ao Brasil o cantor Zeca Pagodinho, quando o convidou para cantar em seu disco o samba “Camarão Que Dorme a Onda Leva”, parceria com Arlindo Cruz e o lendário Beto Sem Braço. Além do ditado presente no título, que expressa necessidade de atenção, agilidade, esperteza e dedicação por parte do cidadão brasileiro, outros são apresentados na letra. Mas essa figura do camarão já havia aparecido com sucesso antes na música brasileira, graças à gravação do grupo Os Originais do Samba para “Tragédia no Fundo do Mar”, em 1974, de Irabin e Zeré, também conhecida como “O Assassinato do Camarão”. E foi mais um sucesso de público e crítica do grupo.
“A Dona do Primeiro Andar” (samba, 1975) – Luiz Carlos e Lucas
É de um intelectual a constatação de que o amplo entendimento do duplo sentido no Brasil remonta ao período da escravidão. Em outros países, essa cultura não seria tão difundida. De acordo com a tese, se vivia naquela época sob uma realidade de mentira, em que a hipocrisia era dominante e as pessoas, escravos preponderantemente, tinham que recorrer a artimanhas para se comunicar e expressar com seus companheiros. Já que não podiam falar abertamente, a exclusão da liberdade lhes foi o mote para criar o “duplo sentido”. Pois é um trocadilho que dá graça ao samba “A Dona do Primeiro Andar”, de Luiz Carlos e Lucas, lançado pelos Originais do Samba, já em 1975.
“Malandro Quilomba” (samba, 1978) – Ary do Cavaco
Mussum remonta a um motivo histórico na interpretação do samba de Ary Cavaco registrado em seu LP de estreia, no ano de 1978. “Malandro Quilomba” é uma volta às origens, às raízes que formaram o sambista, torcedor de arquibancada, mangueirense fanático, e apreciador das belezas da vida, como o “mé”, a mulher e o cigarro, Antônio Carlos Gomes no humorista Mussum, conhecido do grande público pela risada alarmada, por invocar-se atoa, pelas palavras criadas e imortalizadas no dicionário dos grandes bordões populares. Mas ele era um artista sensível, sobretudo, cuja alma alegre e o bom coração espalharam-se através de quadros, esquetes, piadas, feitas para alegrar as crianças, os velhos e os moços. Feitas para adoçar esse mundo de briga e de bronca. “Pois brigar não é pra mim/ (…) Eu sou um crioulo original/meu negócio é folia/futebol e carnaval”, avisa Mussum. Cacildis, vamos rir com vontade!
“Água Benta” (samba, 1978) – Ratinho e Sombrinha
Um dos méritos do grupo “Os Trapalhões” era rir dos estereótipos que eles próprios representavam, fazendo troça não do outro, mas de si. Em seu disco de estreia como artista solo, após uma longa jornada como integrante dos “Originais do Samba”, onde se habituara a soltar a voz e comandar o reco-reco, Mussum escolheu um samba de Ratinho e Sombrinha, intitulado “Água Benta”. Com participação de seu “estepe”, como diz Alcione, e da madrinha do samba que o humorista carinhosamente chama de “comadre”, a canção lançada em 1978, traz uma óbvia ironia que só poderia estar contida na boca de Mussum. Afinal o “Mumu da Mangueira” cantando uma canção chamada “água benta” já é motivo suficiente para muita risada, festa e “mé” à vontade! Só “mais uma beiçada”, diz o próprio!
“Alô, Judite!” (samba de gafieira, 1978) – Almir Guineto e Luverci
Com um instrumental de primeiríssima qualidade, com orquestra e tudo, Mussum registra em seu primeiro álbum, de 1978, a música “Alô, Judite!”, dos amigos Almir Guineto e Luverci. Ainda no campo do humor, o artista faz uma brincadeira com o deslumbramento da Judite da letra, que adentrou ao “dog society”, “tratou da celulite”, “ofusca a luz da Light” e está até “usando modelos do Clodô”, referência bem humorada ao estilista Clodovil. Esse samba de gafieira mostra não só a veia cômica de Mussum, mas também as qualidades do músico, e até certa preocupação social, ainda que disfarçada sob as ironias.
“Rio Antigo” (samba, 1979) – Chico Anysio e Nonato Buzar
Composta no ano de 1979, numa parceria do humorista Chico Anysio com Nonato Buzar, um dos nomes do movimento denominado como “Pilantragem”, a música “Rio Antigo” foi um estouro na voz de Alcione. Conhecida também pelo prefixo de “Como nos Velhos Tempos”, a canção evoca um passado remoto em que o Rio de Janeiro era uma capital cosmopolita, cheia de esperança e fé na vida. Chico também interpretou essa canção com Mussum, num dueto impagável entre dois dos mais queridos comediantes do nosso país.
“A Vizinha [Pega ela Peru]” (samba, 1980) – Paulinho Durena e Alfredo Melodia
Boteco armado, Tião Macalé no posto de garçom, o grupo “Fundo de Quintal” em sua primeira formação, com direito a Jorge Aragão e Ubirany no quadro, Mussum não dá trela para a formalidade e esbanja categoria nesse samba onde o tema próximo de sua realidade favorece a interpretação, que permite o improviso, as gafes, os cacos, tudo ao estilo livre, leve e solto do artista. Com letra de Paulinho Durena e Alfredo Melodia foi gravada no segundo disco solo de Mussum, “O Descobrimento do Brasil”, em 1980. O tema da vizinha que ofende o vício na bebida da outra e o sururu armado é um prato cheio para o sambista, melhor, uma garrafa que ele logo esvazia. E pode descer outra, já!
“Teatro Brasileiro” (samba, 1980) – Martinho da Vila e Gemeu
Para demonstrar intimidade e também com certo ar de galhofa, Mussum se refere a Martinho da Vila pelo nome de batismo, José Ferreira, na interpretação em dueto do samba “Teatro Brasileiro”, de 1980. A música é, justamente, uma composição de Martinho com Gemeu, que deveria ter ido para a avenida, como eles contam durante a gravação, e foi registrada por Mussum em seu disco solo. A letra presta homenagem ao samba e ao teatro brasileiro, e não poderia ser melhor interpretada do que por Mussum, identificado com a música e a arte da atuação. Para completar, faz menção a eventos históricos como a abolição.
“Tempo Bom Faz Tempo” (samba, 1980) – Bidi
Em 1980, Antônio Carlos Gomes, o famoso Mussum, lançou um disco-solo em que se destacaram faixas como “A Vizinha (Pega Ela Peru)” e “Tempo Bom Faz Tempo”. Este segundo é um samba do compositor Bidi, em que ele aborda as mazelas da sociedade brasileira que, infelizmente, mantém sua atualidade. Entre a crítica e a galhofa, a letra menciona problemas como a inflação, o preço da gasolina, dos alimentos e até de especiarias como o chuchu com camarão, algo a que Carmen Miranda já se referia na década de 1930. Lá pelas tantas, Mussum ainda cita o eterno Rei do Futebol. “Um Pelé pra Seleção/ Faz tempo/ (…) O meu time campeão/ Faz tempo”, ironiza o sambista.
“Piruetas” (MPB, 1981) – Chico Buarque
A versão em português com músicas de Chico Buarque para o musical italiano “Os Saltimbancos”, serviu de base para o filme dos Trapalhões, de 1981, que também trazia Lucinha Lins no elenco. A versão italiana, por sua vez, era uma adaptação do conto dos Irmãos Grimm, “Os Músicos de Bremen”. Ao unir um universo fantástico, protagonizado por animais falantes, com a magia típica do mundo circense, Chico criou uma trilha sonora delicada, onde ele próprio interpretava a primeira faixa: “Uma pirueta/ Duas piruetas/ Bravo/ Bravo!”. O longa-metragem com Os Trapalhões se tornou um dos maiores sucessos de bilheteria do quarteto formado por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, fazendo história na telona.
“Embolado na Serra” (forró, 1982) – Lenine e Bráulio Tavares
Em 1982, os compositores Lenine e Bráulio Tavares compuseram especialmente para o filme “Os Trapalhões na Serra Pelada”, da famosa trupe, o forró “Embolado na Serra”, mais um sucesso de bilheteria. A música é interpretada por todos os integrantes, que dividem o vocal entre si. Didi, Dedé, Mussum e Zacarias participam da faixa, cada um à sua maneira, sublinhando as características das personagens. Ao longo da trajetória do quarteto, a trilha musical sempre foi um aspecto de fundamental importância na narrativa fílmica.
“Because Forever” (samba, 1986) – Mussum e João Nogueira
Numa das raras intervenções de Mussum numa letra de música ele prova, mais uma vez, que sua figura na vida e na arte se misturava, era uma só. O texto bem caberia num quadro dos “Trapalhões”, e na feliz parceria com o renomado João Nogueira, Mussum dá uma lascada de primeira nos bons costumes e provoca com o duplo sentido que a inflexão da palavra e seu próprio som induzem. Afinal de contas “no carnaval do ano que vem/do jeito que a coisa vai, meu bem/vai sair todo mundo nu/sambando e remexendo o córpis/eu disse o córpis”, faz ele questão de ressaltar! Pode arranjar uma pindureta, quem entendeu, entendeu, quem não entendeu, pindura mais! A música foi gravada no último disco solo do artista, em 1986, cuja canção em destaque deu o título.
“Grande Gerê” (samba, 1986) – Noca da Portela e Toninho Nascimento
Você sabia que Mussum defendeu as mulheres trans na década de 1980? Em 1986, o humorista lançou o samba “Grande Gerê”. Composta por Noca da Portela e Toninho Nascimento, a música conta a história de Geremias, um rapaz que tinha tudo mas era muito infeliz. Um dia, ele decide ir pra Paris, coloca silicone, ganha busto e quadris. “Mais bonito e mais corado, desfilando seu gingado com ar de imperatriz, Geremias agora é mais feliz!”, celebra Mussum. Na época, a modelo trans Roberta Close, eleita uma das mulheres mais bonitas do Brasil, já tinha posado nua na Playboy e ganhado uma música de Erasmo Carlos.
Foto: Museu da Imagem e do Som/Divulgação.