Mauricio Tizumba: ‘O meu sorriso no rosto você pode chamar de navalha’

*por Raphael Vidigal

“Me sinto possuidor dalguma coisa INDESTRUTÍVEL dentro de mim.” Wally Salomão

Durante alguns segundos tudo parece em suspenso, até que uma chuva de palmas despenca sobre o homem preto, com todos os holofotes em cima dele à frente do palco, alinhado com seu terno amarelo e expressão altiva. Tizumba morria de medo de dormir embaixo da ponte ou em cima dum banco de praia. Uma aflição difícil de imaginar para o sujeito que, hoje, se define como “vitorioso”. “O Wagner Tiso já tocava com o Cauby (Peixoto) e com a Gal (Costa) quando me contou que dormia em banco de praia no Rio de Janeiro. Eu jamais teria estrutura psicológica para ter essa resistência da galera que passa fome, frio, dorme na chuva e depois consegue vencer”, recorda o artista.

Com os pulmões cheios, as pessoas entoam o nome com o qual ele percorreu o mundo com seu tambor, apelido dado por um professor que sacou a musicalidade inerente ao aluno, espécie de neologismo ou uma quizumba com as palavras, agitando o tempo e o espaço. No início do espetáculo “Herança”, que celebra a trajetória de cinco décadas de Tizumba nos palcos da vida, o protagonista, ao lado da filha Júlia Tizumba e do compadre Sérgio Pererê, evoca a origem do alfabeto banto, fonte de poder e de linguagem do povo da África. “Fiz tudo para o espetáculo não ser aula, porque toda hora a gente tem que ficar dando aula de negritude e isso chega a ser até um saco!”, dispara.

Herança. Depois de uma temporada de estreia consagradora, “Herança” volta à cena em abril, com novas apresentações nos dias 28, 29 e 30 do mês. Além do trio citado, o elenco conta com a participação especial de Rosa Moreira, irmã de Mauricio Tizumba. A dramaturgia foi construída em conjunto, a partir de depoimentos dos intérpretes, por Aline Vila Real, Tomás Sarquis e Grace Passô, que também assina a direção caprichada e precisa, capaz de elaborar momentos de comoção com política. “Grace é uma mulher preta, talentosa, trabalhar com ela é se surpreender o tempo todo. Ela enxerga tudo e tem a capacidade de ir desenvolvendo com inteligência todos os detalhes, desde uma fitinha vermelha até a grande imagem exibida lá na projeção”, exalta Tizumba…

E não para por aí. “A narrativa parte da gente, das nossas histórias. Talvez se a gente tivesse colocado um branco pra dirigir, ele não iria entender, porque ficaria no lugar de branco. A Grace consegue entender a inteligência do branco e a nossa. É uma das maiores diretoras do nosso Brasil na atualidade”, completa. Segundo Tizumba, “o racismo continua muito forte e agora está mais declarado”. “É melhor lidar com um povo que se assume racista porque a gente pode olhar nos olhos deles e enfrentá-los. Isso facilita a nossa possibilidade de evoluir. Pra comunidade branca é difícil aceitar uma faculdade cheia de pretos, aviões cheios de pretos. A gente não vai em todos os lugares porque podemos escolher, e tem ambientes em que as joias e os perfumes são tão violentos que não temos interesse. Nós escolhemos ir aonde somos bem-recebidos”, afirma.

Fé. A luta iniciada há décadas por seus ancestrais segue com “uma meninada que está chegando e vai avançar muito mais”, vaticina Tizumba. “Mas a igualdade não vai existir nunca, porque tem o povo preto e tem o povo branco. Nunca vai ser igual, nem na lei da Bíblia. Que somos todos iguais perante Deus, somos, mas na hora que vê a cor, a desigualdade aparece no meio dos cristãos”, reflete o músico. A espiritualidade, aliás, nunca abandonou a vida de Tizumba. “A minha recordação mais antiga de música é nos terreiros de congado e candomblé, onde a gente cantava e tocava durante as nossas manifestações, e era muito bonito e forte. Quando criança, eu já tinha dentro de mim essa coisa de juntar os cânticos da umbanda, do congado, do candomblé”.

“Herança” também brinca com a relação entre as linguagens, misturando dança, teatro e canto. “Sempre tive essa formação de cultura popular e ela é tudo isso, bem antes. Quando você participa do congado tem dança, figurino, cenário; na umbanda, no candomblé e na folia de reis é a mesma coisa. Eu já tinha isso desde a infância. Até porquê, alguém disse que toda arte que a gente desenvolve hoje vem da religião. O que se esculpe, o que se toca, o que se canta, o que se dança, o que se fala, o que se pinta, o que se costura, toda arte. E ainda teimam em dizer que vem do grego. Não, ela vem do negro, na África, mãe de tudo isso”. Criada em 1996 por Tizumba e pelas atrizes e cantoras Marina Machado e Regina Souza, a Cia. Burlantins serve de exemplo para essa mistura de linguagens com origem na religiosidade, com canto, dança, artes plásticas e os cenários que se movimentavam através de truques.

Riso. Outra marca registrada de Tizumba é o sorriso, que ele usa como arma. “Com o humor eu consigo romper barreiras e te confesso que, em algumas situações difíceis, ele me faz até atropelar. Sempre combinei tensão e luta com alegria. Quem me dá esse bom-humor é até o branco, de eu ver eles fazendo coisas tão bizarras que se tornam engraçadas. Uso essa coisa meio que de volta”, diz ele, trazendo à mente a imagem de um bumerangue, antes de lançar mão de metáforas ainda mais poderosas. “É uma vida em que tudo é adverso à sua caminhada, não digo eu como artista, mas para todo o povo preto. O salário é adverso, a educação é adversa, a medicina. Nada favorece. Aí eu tenho que usar uma arma pra poder sair na frente. Talvez esse meu sorriso no rosto você pode chamar de navalha, martelo, trator pra enfrentar gente racista”.

“Tem uma coisa já manjadíssima que é ‘violência gera violência’. Isso pra mim é a coisa mais clara para mostrar que os pretos escravizados nunca foram dóceis, foram violentos também pra se defender. Então pode saber que, nós, pretos, conseguimos também ser violentos com os brancos. Nem sempre fomos dóceis como a história conta, ‘acorrentadinhos’ pra lá e pra cá. Não, a gente usou muito a inteligência pra virar nego fugido, pra criar as nossas repúblicas como Palmares, criar os nossos quilombos pra nos defender. Não estou achando interessante ser violento, estou falando como reagimos à violência. Temos relatos de várias vitórias violentas dos negros que a história não conta e eu também não vou contar, se quiser vá estudar”, provoca Tizumba. “As injustiças começam com o sequestro dos negros em terras de mãe África e estão aí até hoje, porque a desigualdade permanece, e é notória”.

Símbolo. Em fins da década de 1980 e começo dos anos 1990, Tizumba conviveu de perto com um dos heróis da mitologia nacional, seu ídolo particular. “Grande Otelo é esse grande mineiro de Uberlândia que fugiu pro circo, foi parar em São Paulo e depois se estabeleceu no Rio. É um dos artistas geniais do Brasil, não vai aparecer outro igual. Sigo ele de olho fechado sem problema nenhum. Os meios de comunicação tentaram fazer um apagamento da sua história, mas não conseguiram, porque ele é muito mais forte. Ele criou um lado de interpretação muito especial e mostrou o caminho para muitos artistas negros. É o maior artista do Brasil”, enaltece. Tizumba interpretou Grande Otelo em mais de uma ocasião, casos dos filmes “Hollywood Bananas”, de 1993, feito por Eid Ribeiro, e “Êta Moleque Bamba” de Vilma Melo, em 2004.

Com o dramaturgo João das Neves (1934-2018), Tizumba empreendeu trilogia em que homenageou outros símbolos da negritude brasileira, como Besouro, Galanga Chico Rei e Milton Nascimento, nosso famoso Bituca. Com mais de 35 peças e uma dezena de discos no currículo, o último em tributo ao conterrâneo Vander Lee, lançado em 2021, Tizumba tornou-se símbolo incontestável de sua Belo Horizonte, uma expressão conhecida em qualquer canto das Minas Gerais. Aos 65 anos, lúcido, ele lida com sentimentos contraditórios ao se constatar entronado nesse lugar. “Pra gente que tá vivo, ser símbolo me deixa meio sem graça, mas eu me sinto também muito importante dentro desse universo da arte para o meu povo. Talvez eu tenha tempo de melhorar ainda mais e errar menos. Me sinto bem como um dos símbolos de Belo Horizonte…”.

Aldeia. A decisão de permanecer na capital mineira retoma os receios do início da matéria. Não era uma decisão comum no período, em que rumar para São Paulo ou Rio de Janeiro parecia imperativo aos artistas. Tizumba gravou o primeiro LP em 1981, quando já era figurinha carimbada nos bailes e bares da cidade natal. “Belo Horizonte tornou-se minha aldeia e por isso canto nesse mundo inteiro, mas em função de eu ter ficando meu pé aqui”, acredita. Um dos inúmeros professores que ele teve ao longo da vida o encorajava a ir para o Rio, mas a resposta vinha na ponta da língua: “Se quiserem, vão ter que vir me buscar”. “Com o tempo, foi o que aconteceu”, orgulha-se o multi-instrumentista. A partir da amizade com o músico Tim Rescala, suas temporadas na cidade maravilhosa tornaram-se frequentes. Ele relembra que, no início dos anos 80, muitos artistas que estavam no Rio começaram a voltar pra casa, “porque a efervescência dos anos 1960 havia passado, com a diminuição dos festivais…”.

Para Tizumba, estava só começando. Sempre tocando nos bares, bailes e teatros de Belo Horizonte, passou a colocar cada vez mais álbuns e peças na praça, até atingir turnês internacionais. Em 1996, alcançou mais um marco com o CD “África Gerais”, que trouxe os sucessos “Maurice a Paris”, prenhe de seu bom-humor, e “Sá Rainha”, evocando a luta e as festividades do povo negro. “Fui trabalhador mesmo da arte, não esperava outra coisa. E continuo sendo esse trabalhador. Encarei a arte como profissão, não era pelo glamour nem pela fama. Tanto que eu achava que ia conseguir comprar uma casa pra mamãe com 12 anos, não deu. Tentei com 14, também não deu. Com 15, não deu de novo. Passei a fazer outros tipos de trabalho, mas nunca deixei a música de lado. Tinha medo de arriscar a carreira fora. Preferia ficar aqui com papai e mamãe. A gente não tinha grandes coisas, mas tinha carinho e amor”.

Esperança. Esse amor “bastava e fortalecia” Tizumba. Ele escolheu ficar, “na certeza de que o mundo um dia iria mudar”. “Tem tanto preto bom aí fazendo arte, todos têm que ser vistos como símbolos da nossa Belo Horizonte”, conclama. Idealizador da Mostra Benjamin de Oliveira, cujo título celebra o primeiro palhaço negro do Brasil, Tizumba pretende comemorar os 50 anos de trabalho na arte com mais uma edição da empreitada, além dos festejos relacionados ao Tambor Mineiro, uma outra iniciativa célebre de sua autoria; aos Tambores de Natal, e à montagem do musical infantil “Terras de Montanha”, dentre mais novidades a serem anunciadas a qualquer hora, dado o ritmo inquieto de Tizumba, canhoto autodidata que toca um violão percussivo.

O Brasil que ele enxerga com olhos que migraram, com seus ancestrais, de Camarões, é um “país dividido, com muito ódio espalhado, os evangélicos nos demonizando porque somos da umbanda e do candomblé”. “Nós que somos pretos de religiões de matrizes africanas vamos ter que nos fortalecer muito, numa união política de enfrentamento, para que esse ódio não nos atrapalhe. Não vai ser fácil porque eles querem apagar a nossa cultura, mas podem enfiar a viola no saco, pois não conseguirão. Vamos continuar tocando nosso tambor pela vida afora”, sustenta, em alusão ao verso que ele propagou através da música “Bicho de Mato”, lançada em “Mozambique”, de 2003. “O presidente Lula foi, sem dúvida, o melhor para os pretos pobres, queiram ou não queiram”.

Memória. Na torcida para que o petista faça um bom governo para todos os brasileiros, Tizumba relembra o passado. Emancipado pelo pai aos 15 anos de idade, sua carreira começou “a tomar sentido por volta de 1972”. Na década de 1960, quando dava, já que não tinha televisão em casa, assistia aos programas da Jovem Guarda e da Bossa Nova, onde tomou conhecimento de “alguns cantores pretos como Wilson Simonal, Jorge Benjor e Agnaldo Timóteo”. Tizumba até cantava músicas deles na escola, “mas o que me influenciou mesmo foi o congado”. Criado no bairro Aparecida, região Noroeste de BH, ele leu as suas primeiras palavras no Sumaré. Logo, venceu um concurso infantil cantando “Meu Limão, Meu Limoeiro”, música eternizada no canto de Simonal.

Ainda no jardim de infância, a diretora o colocava para dançar. Cantar e tocar foi, literalmente, um pulo. “Desde os 5, 6 anos, eu já mexia com a negritude, botava uns sambas pra enfeitar”. No ginásio, com esse potencial artístico aflorando, ele se encaminhou para o teatro. “A partir dali, entro para o conjunto de baile, tiro a minha carteira de músico e, aí, acabou. Estava com 15 anos e já não tinha mais jeito”. Talvez Tizumba ainda seja esse menino de quinze anos, já sem medo da chuva, molhado apenas pelas palmas. “Um homem vitorioso”…

Serviço.
O quê. Espetáculo “Herança”, com Mauricio Tizumba, Júlia Tizumba e Sérgio Pererê
Quando. Dias 28, 29 e 30 de abril; sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h
Onde. Centro Cultural Minas Tênis Clube (rua da Bahia, 2.244, Lourdes)
Quanto. De R$10 a R$20 pelo site burlantins.com.br/heranca

Foto: Pablo Bernardo/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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