Livro de autor mineiro investe em narrativa fragmentada e coloquial
Há um fato não desvelado sobre recente obra do autor mineiro Luiz Ruffato. Na verdade, dentre muitos, há um que me salta especificamente aos olhos, aparentemente de relevância questionável. É possível que isso nem tenha passado pela cabeça do autor, mas o seu protagonista guarda outra interseção com a realidade além de também ter nascido em Cataguases. Sérgio de Souza Sampaio, o Serginho, é homônimo de primeiro e último nomes do compositor esquecido que estourou com o hit “Eu quero é botar meu bloco na rua”, e depois desapareceu no olhar obscurecido do grande público.
Sérgio Sampaio, o fictício, empresta seu pequeno relato através da pena ágil de Ruffato para dar vazão a uma realidade ampla e aberta que se revela pelas pequenas considerações feitas através de discurso casual, ingênuo, quase discreto, misturando assuntos a outros num ritmo acelerado, mas de natureza contida, se limitando aparentemente a abarcar a pequena condição de um jovem desempregado que vê a vida desmoronar por problemas comuns do cotidiano, nada de grandes questões reflexivas sobre a filosofia humana, “apenas” a perda do emprego e a “idéia fraca” da companheira que ele engravidou por “acaso”.
Aliás, um dos trunfos da narrativa de Luiz Ruffato é apresentar questões complexas sob a cortina da casualidade e do emaranhado de circunstâncias em que as pessoas se envolvem sem tomarem consciência da proporção exata que ela adquire. O compositor Sérgio Sampaio também usava dessa artimanha, misturando sua narrativa pessoal com fatos cosmopolitas e provincianos, como, por exemplar, ao declarar o sentimento que o envolveu, na música Muito Além do Jardim: “nosso amor morreu tão cedo…durou o tempo exato da agonia do Tancredo.” Se valendo da realidade explícita e escancarada e de idéias que estão além do campo da objetividade, muito além do jardim.
Pois a história que Ruffato propõe vai muito além da distância entre Cataguases e Lisboa que Serginho tem que percorrer para fazer seu caminho. Na verdade essa travessia dá-se através de linguagem e do emprego de observações peculiares sobre um universo íntimo que depõe contra questões universalistas. Todo o tempo a grande preocupação de Serginho é se inserir em uma sociedade onde ele desempenhe papel de destaque, sendo reconhecido por seus feitos ou ainda pela simples aparência deles. E aí está a grande chave do mistério: a “aparenciabilidade.”
Para Cleópatra não é necessário ser honesta, basta parecer honesta, diria o outro filósofo desconstrutor para construir essa nova visão que detém a pós-modernidade, cheia de desreferencializações por conta de suas múltiplas referências, instaurada num ciclo de consumo que subjetiva a ela própria e oferece a total liberdade para ser incoerente. A fragmentação dessa nova era cheia de pólos para se agarrar e camadas flexíveis, aparece representada na narrativa de Ruffato que se descola sem considerações solenes de uma visita a uma prostituta apaixonante ao histórico de guerra do velho que recebe visitas pornográficas, sendo o cunho sexual irrelevante no link. À essa maneira, ele aborda questões relativas à nossa sociedade: a competição mercadológica e principalmente o que as pessoas precisam fazer para supostamente “vencer” nesse meio, o preconceito com o diferente que acaba se equiparando à massa para sobreviver, as dificuldades de relacionamento e os desvios emocionais que se incutem nesse processo.
Outra celebridade desconhecida e exótica da cidade de Cataguases é a cantora masculinizada e perseguida por seu estereótipo híbrido pela ditadura, Maria Alcina. Ainda na década de 60, ela se notabilizou pelas largas fantasias e pelo linguajar de superfície chulo, mas de essencialidade rica, ao resgatar do folclore nordestino toda a malícia reprimida do povo brasileiro naqueles tempos, com verdadeiras pérolas do quilate de “Bacurinha” e “Prenda o Tadeu”. É por essas fantasias, palavras grifadas que podem arrefecer os sentidos como sendo de significação baixa que Serginho vai aos poucos se enraizando na pátria que nunca foi dele, substituindo os cacoetes antes presentes em sua interiorana e pacata Cataguases pela agressividade com a qual tem que se confrontar em Lisboa. Ali é o estrangeiro que precisa se inteirar do código para ser aceito. Algumas dificuldades vividas fazem parte, de certo modo, da própria biografia do autor, obrigado a dormir e tomar banho em rodoviária, ser pipoqueiro, balconista e torneiro mecânico, dentre outras profissões, antes de se consolidar como jornalista e escritor de sucesso no Brasil e na Europa (traduzido para várias línguas: italiano, francês, espanhol).
Logo na abertura do livro, Ruffato faz uma brincadeira que “parece” séria. Inventa a naturalidade da história ao prescrever que aquilo é relato “minimamente editado” ocorrido em tais lugares, a tal dia e hora. Tudo se passa de forçar a imaginação a ser oferecida “à vontade”, escancarada em sua falsificação quando comparada com uma pretensa veracidade que é propositalmente exagerada. Trata-se de questionar o jogo da representação e apontar essa crise oriunda do esgotamento dos temas. O fim da originalidade e da criação. Ou seja, não há como representar uma realidade que a princípio se propõe sem amarras e totalmente solta em sua pós-modernidade, instaurada, entre outras coisas, pelo fim dos meta-discursos coercitivos e assegurados.
Outro artista pródigo em exaltar essa crise foi o surrealista e catalão Miró, vizinho da Lisboa onde desembarca o personagem de Ruffato, que através de suas curvas coloridas precedidas por telas quase totalmente brancas ou queimadas, entremeava vários discursos dissonantes e amplificados, que poderiam formar afinal, uma unidade indivisível, mas ainda assim, fragmentada. O autor também entremeia várias histórias com cortes bruscos, dando o paladar da oralidade na fala.
Encomendado pela Companhia das Letras para fazer parte da coleção Amores Expressos, que pretendia relatar o amor itinerante através das narrativas de diferentes autores por várias cidades, Ruffato solicita ao leitor a percepção de um amor implícito que se esquiva do contato, que é o não direto, o não alcançado, não terminado, e, portanto, aberto a possibilidades. O fim não conclusivo que define uma única decisão do protagonista, a de voltar ao vício que ele abandonara no inicio do livro, deixa no ar uma fumaça reflexiva sobre os caminhos da linguagem e a sua impregnação quase que obsoleta ao imagético, lembrando um pouco uma música do antecessor bossa-novista Lúcio Alves, também de Cataguases, que cantava: “de conversa em conversa você vai arranjando um meio de brigar, de palavra em palavra você está querendo é nos separar”.
As palavras de Luiz Ruffato têm mais o sabor da interrupção fragmentada que alcança o olhar do outro lado, que da continuação que se conforma e se consome em sua esfera limitadora. A Cataguases de Serginho não é a destinação à Lisboa. É a imagética necessidade desanuviada da pós-modernidade.
Raphael Vidigal
Produzido para a matéria de Jornalismo Cultural, ministrada no curso de Comunicação da PUC Minas por Márcio Serelle.
11 Comentários
Li esse livro algum tempo atras e recomendo, principalmente depois dessa análise sua, Raphael. Você esclareceu pontos que eu não havia percebido. Foi muito bom, obrigada! Escreva sempre sobre livros, tá? Pq adoro ler e gosto de sugestões de bons livros para ler. Beijo grande!
Obrigado, Raphael! Que belo trabalho você fez! 🙂
Abração!
Muito obrigado à Fátima e Luiz Ruffato pelo elogio e incentivo. =) Abraços
Excelente matéria do Raphael Vidigal sobre o “Estive em Lisboa e lembrei de você”.
Muito bom!
Agradeço, Martha Mary.
Parabéns pelo texto Vidigal! É possível ver a sua evolução a cada texto q leio! Continue assim!
Muito obrigado, Ricardo! Volte sempre. Abraços
adoro o ruffato! ?
Grande escritor, Elisa! Abraços
“?” boa noite, Cristini Scaramucci Scaramucci !