“E ela se contorce toda
presa em minha teia:
Era pétala amputada
Tornou-se flor inteira.” Simone Teodoro
Dizem dessa história há muito tempo, mas é tudo mentira, nunca passou por aqui. Alto, magricela, delicado como uma pluma de boneca da menina a pairar por sobre os porcos do chiqueiro, serve e insiste para que se repita: cachaça. Fina no gargalo e rechonchuda no espalho dos quadris largos imprime à garrafa uma força espirituosa na rolha. O aroma da cana de açúcar é unânime em sua graça. Copos aproximam corpos e esbaldam. Quiquito é só alegria e cortesia irritante. Insiste a um gole mais e mais e mais outro. Como se necessário fosse. Com a espontaneidade e devoção de soldados de guerra após o abate dos inexperientes carrascos o álcool molha os vitoriosos.
A magreza de vacas, vielas e ruas interrompe as falas, lacrimejantes. Sondam com rigor e astúcia os mosquitos: sangue. Nem só rotura e vergalhões nesta paisagem seca. Os bípedes trazem aos trancos e barrancos ossos secos. Muitos se prendem às tocas como a cutia ao buraco. Não adianta oferecer o sol áspero. Preferem a treva da luz. E quem disse dela beleza não há? Velhas superfícies gastas, ranzinzas e rugosas não almejam tocar o ouro, nelas cresceram ramos por sobre elas para cultivar raízes por sobre os ossos e desprende-las todos sabemos é um trabalho de flores. Movidas pela inércia de ali nascidas, criadas e só desejam sair mortas.
Mas quanta tragédia não há para os cadáveres de fino trato caminharão levando telhas tralhas trombas tocaias cutucados para dentro contra o vento para os lados nunca acima para fora para fora para fora para fora para fora para fora do buraco. Carrega trouxa pela sombra atiça querendo crer na possibilidade: de se fazer algo. Não se pode nada. Apenas escreve linhas tortas: ora documentais outrora abruptas! O barulho atrapalha quem age no encerrar das horas. Mandam fechar a matraca e cumprir com o trabalho. Ao relento junto de chorume e sapatos ouve: um iguana: ou coruja: ou a amante: Ágata? Ou um animal mais rasteiro e exótico: uma cobra d’água?
A crueldade bate ao caminho da porta os degradados entulham favelas respiram de perto a poluição desnutrem-se de comida podre. A miséria pulula à frente sem que ninguém lhe tasque uma bela varada nas ancas. O sapo coaxa um deboche em noites que se repetem e refazem: o que míngua é a vossa esperança. A coruja emite um chiado, antes de levantar voo: são os tambores com fitas coloridas na festa do Congado, as lavadeiras na beira do riacho, que isto não seja asfaltado por esquecimentos e ganância infame, será a glória. Lamento muito que a gente tenha que se separar dessa maneira. Foi a confluência dos mares.
Fico procurando palavras no alfabeto, investigando pinturas árabes, e então descubro essas palavras menos exatas, para assimilar a dureza, e dizer, apenas: lamento muito que a gente tenha se separado. Desta maneira. Foi a confluência. Dos mares. Quando eu sinto pena dela é que mais a amo. Quando sinto dor, compaixão, romance. O perdão é mais bonito do que o amor puritano. O gato maracujá da África parece onça. Ninguém é totalmente mau ou bom. Há interesses em jogo. Se esta rua fosse minha. Eu vi tudo de perto. O sino da igreja, a sina da cena. Desdenhosa, dissuasiva, emanava uma apatia débil: Maria do Minério.
Raphael Vidigal
Pinturas: Obras de Jean-Honoré Fragonard.