“O que faz de nós o que somos é inatingível e incompreensível. Entregar-se ao amor dá alguma ideia do que é irreconhecível. Nada mais importa no final das contas.” Josephine Hart
A onça escapa ligeira como tua área. O estampido é um tiro de espingarda. O labor das nuvens cor de argila não contém a fúria do animal em perigo. Carente de sangue, fibra, sais minerais, proteína. Meses passam numa tarde, num dia. Revelam os ossos do corpo firme em carne da onça em perigo. O velho osso roído não é cachorro, gato ou passarinho. Uma onça: uma cigana: uma mulher: clandestina. Aonde quer que vá: clandestina. Ágata: uma rouquidão da mudança de tempo ou do cigarro: Maria: barba-ruiva cor da palmeira verde-água: uma vaca malhada: um cavalo: ao longe, salmos: preta e branca masca chiclete, mato, palha: o serro: a serragem: o cerrado. Mimosa cidade.
A bandeira gasta da ruína grega. Quem tem um bem de fato sabe que o tamanho importa pouco, pode ser uma ponta de agulha, uma lembrança, uma ausência: sempre renasce. Apenas um sinal, um presságio. Sabe que eles existem: e estes, sob cortina de fumaça tóxica: nenhuma: tornam-se transparentes. Sob o sol de couro, fibra, fios, tecido, tinta: brutalizam todos os dias: é preciso menos motivos para o lamento cotidiano, mais elementos para a esparsa alegria. Refletidos nos retrovisores, viram a vida passar a meio metro dos calcanhares de Aquiles. O orgulho não é conotação de elogio segundo premissas da boa convivência.
O gato, ao contrário, de pelo macio, olhos esguios, ferina articulação de penteados bigodes e língua a roçar nas patas, encanta. Com petulância desfila o sadio corpo fazendo troça dessa terra safa. O rio, serpente de água, e o lago, chocalho de cobra, incidem na pedra o barulho de cachoeiras grossas, enormes, esquecidas e iluminadas. Como ditado do povo, como o gato, ninguém se lembra, mas se aparece encanta. Repleto de fraquezas consentidas, e de destrezas também, não sendo arte é uma paisagem muito bem pintada, somente decoração, não sendo arte, dava uma peça cafona apresentada no lugar de praxe.
Este velho homem de cabelo branco, barba mal feita e virilidade, foi, noutra época, um cavalo. Mas agora de tudo sabe. Tem o olhar tão doce e ameaçador. Um velho que colhe plantas com a foice dos hereges e ingratos, firme, ao mesmo vento, canta. Na lavoura do sol a pino seu chapéu de palha é apenas desculpa para compor a cor amarelo-ácida dum quadro de Van Gogh. Inofensivo e forte, perto e distante, o velho passa fome. E vive certo de que agarrará com mãos duras, ao mesmo vento, doces.
Raphael Vidigal
Pinturas: Obras de Toulouse-Lautrec.