Jorge Aragão compôs música que chegou até Marte

Pagode

*por Raphael Vidigal

“Onde mora essa memória
ele toma seu estar
Forma diáfana de luz em treva
Qual sombra vem de Marte e permanece” Ezra Pound

Copo na mesa, borbulha a cerveja e ferve o salão. Com o corpo ajeitado para segurar no laço o cavaquinho, Jorge Aragão dá início à festa. Sem cerimônia, convida para apreciar o barulho que vem do fundo do nosso quintal.

Um sem número de sucessos postos à boca do povo enquanto todos se balançam no ritmo do pagode, confraternização acima de tudo, antes conceito do que número.

“Ô coisinha tão bonitinha do pai,
Ô coisinha tão bonitinha do pai,
Você vale ouro,
Todo o meu tesouro…
Agradeço a Deus porque te fez!”

Vindo do centro do Rio de Janeiro, coração do samba, Jorge Aragão põe raiz no seu pagode, revigora-se com pitadas de espontaneidade, e sorrisos difusos para o público, a quem trata como amigos, reunidos na roda da vida.

Logo foi descoberto por Elza Soares, já diva do mexe-mexe brasileiro ligado ao soul americano. Como “Malandro” que foge da polícia, o noviço compositor acertou de cara sua profissão: músico dos morros.

 “Podemos sorrir
Nada mais nos impede
Não dá pra fugir
Dessa coisa de pele
Sentida por nós
Desatando os nós
Sabemos agora
Nem tudo que é bom vem de fora…”

Todo romântico daria um bom sambista se fosse Jorge Aragão. Mas só mesmo ele pra grafar com modéstia e altitude as foscas cores do amor capaz de combinar letras apaixonadas com melodia que alça a platéia ao delírio. Campeão no quesito popular com refinamento.

Projetando a voz grossa aos estandartes maiores do nosso panteão, habitou-se a dividir cadeiras e abraços com Beth Carvalho, Almir Guineto, Paulinho da Viola, Alcione, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, e claro, o mais importante, cidadão brasileiro: pronto a abraçar o pagode legítimo e descompromissado de Jorge Aragão.

“Deixe de lado
Esse baixo astral
Erga a cabeça
Enfrente o mal
Agindo assim
Será vital para o teu coração…”

coisinha do pai

“Malandro” (samba, 1976) – Jorge Aragão e Jotabê
A música de Elza Soares, tal qual a perfeita expressão da personalidade, combina rítmica, harmonia, melodia e letras bem trabalhadas, embelezadas por seu canto instigante e bardo, nas mais altas prateleiras da atemporalidade. “Malandro”, samba de 1976, foi lançado por Elza juntamente com o compositor Jorge Aragão, que divide a autoria da música com Jotabê. Os versos relatam um aviso de que o amor representa perigo. Mas vale o risco, tão bem ritmados pela cantora.

“Coisinha do Pai” (samba, 1979) – Almir Guineto, Jorge Aragão e Luiz Carlos da Vila
Imagine um trio de craques reunidos para criar um grande sucesso. Foi o que aconteceu quando Almir Guineto, Jorge Aragão e Luiz Carlos da Vila se uniram para dar forma ao samba “Coisinha do Samba”, um dos maiores sucessos da carreira de Beth Carvalho, lançado pela Madrinha do Samba em 1979, no LP “No Pagode”. Jorge Aragão também a regravou com grande sucesso. Em 1997, a música “Coisinha do Pai” foi escolhida pela engenheira brasileira da Nasa, Jacqueline Lyra, para ser enviada à Marte, através de um robô, tamanho o sucesso da música no planeta Terra. “Ô coisinha tão bonitinha do pai…”.

“Coisa de Pele” (samba, 1986) – Jorge Aragão e Acyr Marques
Jorge Aragão nasceu no Rio de Janeiro, no dia 1º de março de 1949. Revelado para a música brasileira através do grupo Fundo de Quintal, ele foi um dos principais compositores apadrinhados por Beth Carvalho, que gravou músicas como “Coisinha do Pai” e “Vou Festejar”, ambas de sua autoria. Já em carreira-solo, Jorge Aragão continuou colecionando sucessos do porte de “Papel de Pão”, “Identidade” e “Coisa de Pele”, hino contra o racismo lançado em 1986. Carioca da gema, Jorge Aragão se consagrou como um dos grandes sambistas da música brasileira, ao lado de nomes como Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz…

“Identidade” (samba, 1999) – Jorge Aragão
Jorge Aragão é bem direto na música “Identidade”, ao abordar o preconceito que acontece de maneira velada no país. Ao discriminar o elevador como o ambiente dessa prática, Aragão faz um recorte para ser mais incisivo ao diagnosticar costumes tristemente enraizados. O samba lançado em 1999 discorre também sobre frases de preconceito racial históricas no Brasil, dentre elas a do tal “preto de alma branca”. Sem perder o ritmo e o suingue, Aragão mostra o descompasso de país formado essencialmente pela miscelânea, mas que relega muitos daqueles que o construíram a posições inferiores, com pouca perspectiva de ascendência social. A não ser pelo elevador de serviço…

Lido na Rádio Itatiaia por Acir Antão dia 04/03/2012.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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