“Hollywood”: entretenimento LGBTQ com pimenta, glamour e crítica social

*por Alan Machado, jornalista, ator e roteirista

“Na era de ouro do cinema, vale tudo para alcançar o estrelato. É possível ser tudo, menos ser você mesmo” chamada da série “Hollywood” (Netflix)

No Dia Internacional contra a Homofobia (17 de Maio), é relevante falar sobre Ryan Murphy, 65, escritor, jornalista, produtor e diretor de cinema, show runner premiado com cinco Globos de Ouro e sete Emmys e mais conhecido por criar e escrever séries como “Nip/Tuck” (2003-2010), a comédia musical “Glee” (2009-20015), “American Crime Story” (2010-2018), que retrata crimes reais, e “Feud” (2017), sobre a rivalidade histórica entre as atrizes Joan Crawford (Jessica Lange) e Bette Davis (Susan Sarandon), cujas intérpretes apresentaram atuações muito elogiadas. Cabe lembrar que diversos dos seus projetos naufragaram ou nem mesmo chegaram a sair do papel, mas ele tornou-se uma referência na abordagem desse universo complexo e ainda com temáticas a serem exploradas. Tanto que a Netflix o contratou a peso de ouro por cinco anos no início de 2018, a fim de produzir conteúdo original para o catálogo da plataforma de streaming com liberdade criativa.

Basta dar uma olhadinha nos seus trabalhos mais recentes para tirar dali algumas características: abordagem melodramática e novelesca ; produção de época sempre caprichada; números musicais; personagens estereotipadas; luta pelos direitos humanos com foco nas minorias (especialmente negros e gays), relatando com veemência cenas de discriminação e preconceito; inevitáveis conflitos familiares; certo romantismo nos relacionamentos afetivos; conforto e apoio nas amizades; além de utilizar a premissa, sempre presente, de que sexo é poder. Casado com Davi Miller e pai de um garoto de sete anos, que nasceu de uma barriga de aluguel em 2013, Ryan aproveitou-se dessa mesmíssima situação e criou a série cômica “New Normal” focada em um casal gay que deseja ter um filho… via barriga de aluguel.

Murphy propõe um resgate histórico da cultura gay norte americana em dois documentários, lançados no início deste ano. “Secreto e Proibido” é sobre a longa luta de duas lésbicas para celebrar sua união, enquanto “Atrás da Estante” revela os bastidores de uma livraria que se transformou em referência da comunidade gay de Los Angeles, abastecendo seus clientes com livros e vídeos pornográficos clandestinos. Além deles, a série “Pose” (2018), um dos seus primeiros trabalhos na Netflix, versa sobre o universo dos bailes LGBTQ em Nova York no final dos anos 80. E, por fim, “Halston”, série prevista para 2021, com Ewan McGregor protagonizando o famoso estilista Halston nos anos 70, e passível de atraso no lançamento por conta da pandemia do novo coronavírus, assim como o projeto “A Chorus Line”.

Cidade dos Sonhos. Nota-se uma dedicação maior do show runner na superprodução “Hollywood”. Afinal, essa minissérie criada, produzida e dirigida por ele, em parceria com Ian Brennan, lhe permitiu acompanhar todos os detalhes, como a reconstituição de época, os figurinos, os diversos ambientes e cenários, com grande potencial para concorrer a diversos prêmios técnicos neste ano. Se isso ocorrer, é claro.

Misturando fatos reais com ficção, é a história recontada do ponto de vista das minorias discriminadas na indústria do cinema (mulheres, negros e gays), algo semelhante ao que Quentin Tarantino utilizou como mote em “Bastardos Inglórios” sobre o nazismo e o destino de Hitler. Mostra os bastidores das muitas produções dos estúdios Ace, a luta de jovens artistas buscando seu lugar ao sol, a troca de favores, o teste do sofá, a guerra de egos e de poderes entre artistas, diretores e produtores durante o pós-guerra em que se consolidou a Era de Ouro.

Jack Castello (David Corenswet), saindo do exército depois da guerra, deseja ser ator, embora sem qualquer experiência de teatro ou aulas de interpretação. Boa pinta, típico mocinho norte-americano, sabendo que precisa ser notado, é descartado diariamente durante processos de seleção como figurante em frente ao Ace Studios. Desesperado com as rejeições e com uma mulher grávida em casa (Maude Apatow), aceitar trabalhar para Ernie (Dylan McDermott, em grande atuação), que comanda um posto de gasolina. O local funciona como fachada para jovens atléticos e atraentes atenderem às loucuras e desejos sexuais proibidos da nata de Hollywood com gorjetas muito generosas.

Castello consegue ser notado e passa a fazer testes. A trama vai aos poucos mostrando as outras personagens como a jovem atriz negra Camille (Laura Harrier), cansada de só fazer papel de empregada, o promissor roteirista negro e gay Archie (Jeremy Pope), o tímido e ingênuo Roy Fitzgerald (Jake Picking), que usaria depois o pseudônimo de Rock Hudson para deslanchar. Boa parte das personagens é estereotipada, com algumas derrapagens no roteiro. Adultérios e traições são aceitos com certa normalidade e os grandes conflitos criados são resolvidos com facilidade, como um final feliz de novela brasileira. O elenco jovem entrega interpretações limitadas, com poucas nuances, com dificuldades para distinguir as personagens que gravam no estúdio daquelas que são fora das telas.

Em contraposição, os atores mais experientes sustentam o espetáculo com talento, como Patti LuPone (Avis Amberg, primeira mulher a chefiar um estúdio), Holland Taylor (Ellen Kincaid, diretora de elenco) e Joe Mantello (Dick Samuels, executivo de estúdio), além do citado Dylan McDermott. Jim Parsons, famoso pelo Sheldon de “The Big Bang Theory”, também produtor da série, surge no meio da trama como o inescrupuloso agente Henry Wilson. Embora apresente alguns tiques de Sheldon, sua interpretação não chega a comprometer. Essa série, com sete episódios de 45 minutos, resulta em um final catártico e redentor durante a entrega do Oscar de 1948.

Talvez o toque de Midas de Murphy seja acreditar no potencial das histórias que escolhe, naquilo que vale a pena contar para atingir em cheio variados públicos, viciados em maratonar séries com sexo apimentado, números musicais e crítica social, sem esquecer que é também, antes de tudo, entretenimento e escapismo, mas não a ponto de ser descartável.

Fotos: Netflix/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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