*por Raphael Vidigal
“O santo é só um ângulo do homem
Como só vê de um lado, enviesado
anda em círculos, se perseguindo,
doida figura que nas costas procurasse o seu sentido todo.
(Buscando o ausente, em Deus, faz-se íntegro e pouco.)” Capinam
Chamado de “mesquinho” e vaiado por uma multidão enlouquecida, José Carlos Capinam chega aos 80 anos consagrado como um dos mais efetivos poetas da música popular brasileira. Natural de Esplanada, na Bahia, Capinam conseguiu a proeza de ser gravado por nomes de primeira grandeza da canção popular, como Elis Regina, Maria Bethânia e Nara Leão, tendo se tornado parceiro dos não menos ilustres Gilberto Gil, Caetano Veloso, João Bosco, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Geraldo Azevedo e Jards Macalé, dentre outros, como Fagner e Zé Ramalho.
As controvérsias não foram menos intensas do que as glórias, como, aliás, convém a qualquer poeta. Em carta endereçada ao artista plástico Hélio Oiticica, o também poeta Torquato Neto, companheiro de Capinam no Tropicalismo, não poupou críticos ao baiano, definindo-o como “mesquinho”. Já em 1969, durante o Festival Internacional da Canção, recebeu uma estupenda vaia que o lisonjeou.
“Viramundo” (baião, 1965) – Gilberto Gil e Capinam
Depois de substituir Nara Leão no aclamado espetáculo “Opinião”, Maria Bethânia participou de outra montagem de destaque. Com direção de Augusto Boal, “Arena Canta Bahia” ainda contava no elenco com os conterrâneos Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, o irmão Caetano Veloso e o carioca Jards Macalé. Naquele palco, Bethânia deu voz pela primeira vez ao baião “Viramundo”, e apresentou ao Brasil o talento de Capinam, letrista da melodia feita por Gil. A canção é, sobretudo, um manifesto de resistência e foi regravada por Gil e Elis.
“Ponteio” (baião, 1967) – Edu Lobo e Capinam
A consagração definitiva para Capinam veio no Festival da Música Popular Brasileira da TV Record de 1967 quando, com “Ponteio”, parceria com Edu Lobo, desbancaram as fortes concorrentes “Domingo no Parque” (de Gil), “Alegria, Alegria” (de Caetano) e “Roda Viva” (de Chico Buarque) e faturaram o primeiro lugar. A apresentação contou com as presenças do Quarteto Novo, formado por Théo de Barros, Hermeto Paschoal, Heraldo Monte e Airto Moreira e, ainda, a cantora Marília Medalha. Foi regravada por Sivuca, Alceu Valença e Zimbo Trio.
“Corrida de Jangada” (baião, 1967) – Edu Lobo e Capinam
No mesmo ano, entusiasmados com o sucesso de “Ponteio”, Edu Lobo e Capinam deram continuidade à parceria, que rendeu pérolas como “Cirandeiro”, “Viola Fora de Moda”, “Limite Fora das Águas” e “Rosinha”. Uma, no entanto, se destaca entre todas estas por ter recebido a prevalência de ser lançada por uma cantora da tarimba de Elis Regina. Em 1967, a gauchinha entregou toda a energia e técnica de sua voz para “Corrida de Jangada”, outro baião estilizado pela dupla de compositores. “Meu mestre deu a partida/ É hora, vamos embora”.
“Clarice” (modinha, 1968) – Caetano Veloso e Capinam
A parceria entre Capinam e Caetano Veloso começou em 1968, e rendeu a modinha “Clarice”, com referências implícitas à escritora Clarice Lispector, além do título explícito. Gravada por Caetano em seu primeiro álbum solo, que chegou à praça no mesmo ano do histórico “Tropicália ou Panis et Circencis”, a canção aposta na própria característica de nebulosidade da literatura de Clarice. “Que mistério tem Clarice/ Pra guardar-se assim, tão firme, no coração”, diz um verso. Irmã de Caetano, a cantora Maria Bethânia compartilha a admiração por Clarice.
“Soy Loco por Ti, América” (tropicália, 1968) – Gilberto Gil e Capinam
O assassinato do revolucionário argentino Ernesto Che Guevara por soldados do exército boliviano, em 1967, comoveu Capinam, identificado com as causas da Revolução Cubana. Para expressar esse sentimento, ele compôs “Soy Loco por Ti, América”, que recebeu melodia de Gilberto Gil e foi adornada com um arranjo tropicalista ao ser lançada na voz de Caetano Veloso, em 1968. A música combina o idioma português ao espanhol e traça metáforas sobre o espírito latino. O autor Caio Fernando Abreu era fã do verso “antes que o dia arrebente”.
“Gotham City” (vanguarda, 1969) – Jards Macalé e Capinam
Apreciador de histórias em quadrinhos, o irrequieto Jards Macalé subiu ao palco com uma longa bata preta, enfeitada com um medalhão no peito, como se estivesse ali para anunciar o apocalipse, o que combinava com sua barba hippie. A reação do público do Festival Internacional da Canção de 1969 à estranheza proposital e provocativa de “Gotham City”, de Capinam e Macalé, foi “uma vaia consagradora”, nas palavras do músico. “Chegamos desconhecidos e, no dia seguinte, éramos famosos”, debochou. A faixa abordava os terrores da ditadura.
“Movimento dos Barcos” (canção, 1971) – Jards Macalé e Capinam
Jards Macalé sempre fez questão de dizer que nunca foi tropicalista, embora a mídia tenha insistindo em um rompimento dele com o movimento na década de 1970. A verdade é que o artista manteve uma postura musical muito particular. Seja como for, em 1971, ele compôs com Capinam um de seus únicos sucessos populares, “Movimento dos Barcos”, uma canção ralentada, que versava sobre desilusões, em meio ao endurecimento da ditadura militar. A música foi lançada por Maria Bethânia, no espetáculo “Rosa dos Ventos”, e regravada por Macalé.
“Coração Imprudente” (samba-choro, 1972) – Paulinho da Viola e Capinam
Rígido com relação a seus princípios, mas maleável no que tange às possibilidades artísticas: esse é Capinam, que, em 1972, provou, mais uma vez, a sua versatilidade poética, ao escrever a letra para um samba-choro de Paulinho da Viola, “Coração Imprudente”. Mesmo ao abordar o universo das relações conjugais, Capinam não perdia a perspicácia. “O quê que pode fazer/ Um coração machucado/ Senão cair no chorinho/ Bater devagarinho pra não ser notado”, dizia a letra. Juntos, eles já tinham feito “Canção para Maria”, em 1966.
“Moça Bonita” (forró, 1981) – Geraldo Azevedo e Capinam
Capinam também explorou com proeza as matizes da canção nordestina. Depois de surgir e se consagrar com um tipo de baião mais moderno em relação àquele espalhado por Luiz Gonzaga, o letrista se encontrou com o pernambucano Geraldo Azevedo. “Moça Bonita”, que mistura influências advindas do frevo e do forró, foi veiculada na trilha-sonora do seriado “Terras-do-Sem-Fim”, da Rede Globo, em 1981, o que contribuiu para seu sucesso. Mas o mérito maior, sem dúvida, é dos dois autores e da interpretação de Azevedo, que a repete sempre.
“Papel Machê” (MPB, 1984) – João Bosco e Capinam
No espaço em que o mineiro João Bosco ficou sem compor com seu principal parceiro, o carioquíssimo Aldir Blanc, o baiano Capinam soube se aproveitar bem para realizar com o músico uma canção de rara beleza. “Papel Machê” une a sofisticação melódica de João Bosco ao lirismo lapidado de Capinam. A música logo se tornou uma das principais tanto do repertório de Bosco quanto da obra de Capinam. Lançada no álbum “Gagabirô”, de 1984, recebeu regravação igualmente exitosa da cantora Zizi Possi, no mesmo ano, em “Dê um Rolê”. “Cores do sol/ Festa do mar/ Vida é fazer/ Todo sonho brilhar…”, filosofa o poeta.
Foto: Victor Carvalho/Divulgação.