*por Raphael Vidigal
“O único real na arte é a arte.” Paul Valéry
Há uma cena do filme “Tár”, dirigido pelo norte-americano Todd Field, que define todo o seu ímpeto. O filme, aliás, é pródigo na precisão: uma sequência basta para que ele dê conta de um determinado aspecto da trama, por exemplo, ao revelar o verdadeiro nome da protagonista, no encontro singelo e, ao mesmo tempo, tenso com seu irmão. Lydia Tár, vivida por Cate Blanchett, é uma maestrina consagrada por prêmios que se acumulam em sua estante, e tem suas convicções abaladas quando um aluno que se declara preto e não-binário afirma que não gosta de Bach, por este ter sido um misógino que deixou 20 filhos pelo caminho. “Isso está documentado”, concorda a maestrina.
A questão que ela coloca como contraponto baliza o filme na forma de dilema. De que maneira esse comportamento se relaciona com a capacidade do músico no mundo das notas e sons? Temos, de fato, um questionamento interessante, embora não inteiramente novo. A relação entre a arte e seu criador tem sido discutida mais intensamente nos últimos anos, em que escândalos envolvendo artistas prestigiados, como Roman Polanski e Woody Allen, dentre outros, vieram à tona, revelando comportamentos condenáveis moral e criminalmente. Mas não são novidade, dada a história de vida de Picasso e Ezra Pound, este um apoiador confesso do nazismo que, inclusive, acabou preso por tal postura.
O escritor argentino Jorge Luis Borges apoiou a ditadura na Argentina, assim como o dramaturgo Nelson Rodrigues no Brasil. Atualmente, o peruano Mario Vargas Llosa é o maior representante literário do reacionarismo de direita no mundo. Para não remeter a Wagner, antissemita convicto que, décadas depois, tornou-se símbolo do governo alemão comandado por Hitler. Seria intrínseco perceber que caráter não tem a ver com talento, embora uma visão de mundo esteja frequentemente implicada na arte que seu criador produz. O que acontece é que há talentos que se relacionam com uma singularidade mais física. Por exemplo, a tessitura de voz e a bela interpretação de Nana Caymmi.
De todas as formas de arte, é dito que a música – sobretudo instrumental, em sua característica mais natural – é aquela que menos se encontra com a realidade, menos ressoa as tentativas de representação que as outras demandam, por sua própria natureza etérea, fluida, subjetiva, ou seja, irreal. O contrário disto seria a sonoplastia, a criação de sons que procura imitar aqueles produzidos por outros agentes da realidade, como o motor ou a buzina de um carro, o sussurro do vento ou os cascos de um cavalo. A música, por definição, almeja um mundo que está além dessa materialidade, e nos remete muito mais a sentimentos do que a acontecimentos ou ações. Ela é guiada por sensações.
Dito isto, o filme de Todd Field amplia o caráter da discussão. Evidentemente que a visão de mundo de Richard Wagner interferiu na música excessivamente dominadora e superlativa que ele produziu, até pelo caráter político de sua convicção. Isso, no entanto, ocorre de modo mais sutil no caso de Bach, afinal de contas, como a sua misoginia seria expressa musicalmente, ou, através de notas e sons, como provoca Lydia Tár no embate com seu aluno? A essa camada, o roteiro acrescenta a própria postura abusiva da maestrina, passando do campo meramente conceitual, daí sim, para a realidade. A jogada, óbvia, funciona no roteiro, novamente pela precisão. Lydia vira o alvo…
Na maior parte do tempo, “Tár” se isenta de realizar avaliações morais, mais preocupado em apresentar o problema e sua temática. É uma posição que atua a favor do filme, ultrapassando o mero denuncismo. Sua personagem principal, encarnada por uma Blanchett em estado de graça, é complexa, ainda que se exiba de um jeito supérfluo para aqueles com os quais ela brinca como se fossem marionetes de sua plateia. As sutilezas dessas relações são realçadas, e nos perguntamos: Marcius Melhem, acusado de assédio sexual por uma dezena de mulheres, deixou de ser engraçado? Suas criações perderam a graça? O que não significa compactuar com seus crimes. Compreender não é justificar. A arte nos diz que o humano é capaz de tudo: do sórdido ao sublime.