*por Raphael Vidigal
“Ao inspirar, por meio da ficção, certas emoções penosas ou malsãs, especialmente a piedade e o terror, a catarse nos liberta dessas mesmas emoções.” Aristóteles
No longa original, a canção era entoada enquanto o cangaceiro, vivido por Othon Bastos, era abatido com tiros por Antônio das Mortes, personagem de Maurício do Valle (1928-1994). Em “Piedade”, novo filme de Cláudio Assis, é Irandhir Santos, na pele do primogênito Omar Sharif, quem canta, sentado sobre uma rocha de frente para o mar, os versos de “Perseguição”, música de Sérgio Ricardo feita para a trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), clássico de Glauber Rocha (1939-1981): “Se entrega, Corisco!/ Eu não me entrego, não!/ Não me entrego ao tenente/ Não me entrego ao capitão/ Eu me entrego só na morte/ De parabelo na mão”.
Além da ligação histórica de Assis com o Cinema Novo de Glauber, fundamentado na premissa de revelar ao Brasil as mazelas de seu povo, a cena é a peça-chave para compreender a constatação que ampara “Piedade”: os mecanismos de opressão se tornaram mais sutis, embora igualmente brutais. O sexo e a violência permanecem balizando a narrativa do diretor, hábil em perceber que a força do abuso foi substituída por táticas de convencimento, que consistem em eliminar as alternativas daquele que se pretende explorar, levando-o a crer que não há saída melhor do que aceitar a lógica do capitalismo neoliberal: ela prevê progresso e desenvolvimento. A questão é: “Para quem?”. O preço a se pagar é o adversário que o filme ataca.
Enredo. Omar, batizado com nome de astro hollywoodiano pelo pai Humberto Bezerra, já falecido, é o filho mais velho de Dona Carminha, interpretada por Fernanda Montenegro (insultada, aos 90 anos, pelo ex-secretário de Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, que a chamou de “sórdida e mentirosa”), com quem toca o bar “Paraíso do Mar”, localizado na Praia da Saudade, na fictícia cidade de Piedade, litoral de Pernambuco. O neto Ramsés (Francisco Moraes) herdou o nome do filho que roubaram de Carminha na maternidade. A outra filha, Fátima (Mariana Ruggero), mora na capital e sonha em se mudar para fora do país.
O desafio do clã é resistir às investidas de Aurélio (Matheus Nachtergaele), executivo da petrolífera que devastou a região, tornando o mar, além de infestado por tubarões, impróprio para banho e pesca, e que oferece uma indenização para eles entregarem o ponto e saírem dali, possibilitando à multinacional ampliar a extensão de seus negócios altamente lucrativos. Os meios que Aurélio utiliza para obter o que deseja irão contrastar com a imagem limpa e clara que ele ostenta. Ecos de “Aquarius” e “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, serão ouvidos, mas Assis tem outra pegada. Ele inclui nessa trama complicada Sandro (Cauã Reymond), cuja realidade é, não só urbana, como americanizada.
A sua Piedade é outra, e atende pelo nome de “Mercy”, cinema pornô do qual ele é dono no centro de uma metrópole cinza e suja como, afinal de contas, elas são. Pai de Marlon (Gabriel Leone), ele começa a ter relações dúbias com Aurélio, inclusive de cunho sexual. Nesse meio tempo, o rebento e seu grupo de amigos ativistas realizam protestos visuais e performáticos contra a empresa que tirou o sustento, a paz e o sossego de tantos cidadãos, e, cinicamente, como uma hidra com suas várias cabeças, também se apresenta como aquela que os irá salvar de suas aflições.
Conflito. A despeito das tramas variadas, o longa dá coesão às narrativas que, em algum ponto, acabam se encontrando de maneira, quase sempre, natural. Um pouco de melodrama não chega a afetar o conjunto da obra. À primeira vista secundária, a personagem da excelente Denise Weinberg é um dos grandes trunfos do filme. Com intervenções pontuais, mediadas por uma tela de computador, ela é a mãe de Aurélio e o atormenta com conversas que trazem à tona toda a vulgaridade e hipocrisia do pensamento preconceituoso e escravagista de uma classe média nacional convencida de pertencer à elite – se não econômica, ao menos ideológica.
Há outros achados circunstanciais que auxiliam a história: aos cabelos longos e rebeldes de Omar – típico sindicalista, condição que hoje sofre com os estigmas colados sobre ela pelo discurso neoliberal –, se contrapõe a careca lustrosa, asséptica e pasteurizada de Aurélio, o ambicioso funcionário-padrão. O plano com Fernanda Montenegro no banho basta para demonstrar a capacidade de Assis em capturar belas imagens, cheias de verdade. Assim como o seu olhar afiado e agudo para o ser humano nos entrega personagens ambivalentes, multidimensionais, ainda que representem estereótipos, com atuações que sustentam boa parte da qualidade da produção.
O desfecho, melancólico, fustiga o espectador com uma fina ironia e revolve, como é da natureza das ressacas marítimas, conflitos que jaziam adormecidos nas gestões petistas e que tomaram conta do ambiente político após a deposição da ex-presidenta Dilma Rousseff – apesar de a precarização tratada ser tema em todo o mundo –, com embates que podem soar velhos, ultrapassados, somente porque o verniz do golpe adquiriu contornos parlamentares, institucionais e engravatados. O inimigo segue à espreita, e, se a esperança não parece próxima, o desalento é atualíssimo.
Fotos: Reprodução.