Felipe Canêdo: ‘A uberização chegou nas artes também’

*por Raphael Vidigal Aroeira

“O objetivo de um artista é criar a beleza. Já o que seja a beleza, é outra questão.” James Joyce

Escritor e cineasta, Felipe Canêdo, 35, cresceu entre o rock progressivo do pai e a MPB da mãe. “Ficava horas mexendo nos discos, arranhei um tanto de bolacha”, confessa Canêdo, que, certo dia, teve uma bela dúvida. “Minha mãe conta que eu ouvi a Elis Regina (1945-1982) cantando ‘quando eu morrer, me enterre na Lapinha’, e perguntei se ela já tinha morrido e sido enterrada na Lapinha”, diverte-se, em referência à canção de Paulo César Pinheiro e Baden Powell eternizada pela Pimentinha. Ao descobrir a fita-cassete, ele ganhou um sonzinho e logo compreendeu como gravar a voz, criando seu “primeiro programa radiofônico”. “Meu barato sempre foi contar histórias”, diz ele.

1 – O que significa ser um artista independente em BH? Como sobreviver do seu ofício sem o apoio de leis de incentivo ou patrocínios? Quais são as opções disponíveis?
Ser artista independente em BH é fazer versos por pirraça, como diria Cacaso. É pisar a terra onde pisaram gigantes como Guimarães Rosa e Drummond, é ser latino-americano, estar na periferia do mundo, fora do eixo Rio-São Paulo. É um corre danado, mas ninguém tá me obrigando, né? No geral, fazer arte no Brasil hoje é ser empresário de si mesmo, ser produtor, ator, assessor de imprensa, tudo ao mesmo tempo. A uberização chegou em tantos lugares, chegou nas artes também. Tem muito herói que vive se apresentando, fazendo outros bicos, mas hoje é difícil a pessoa viver de arte sem entrar em editais públicos. Eu, que sou do cinema e escrevo, não vejo outra possibilidade. E o problema é que a coisa acaba virando um pregão: para ganhar um recurso de edital, você tem que prometer fazer mais com determinado recurso. Mais apresentações, mais contrapartidas, etc. Quem promete mais, leva. Isso precariza a economia da cultura. E o pior: os editais não são acessíveis, são burocráticos, e não são democráticos. Muitas vezes artistas grandes se beneficiam e os pequenos ficam de fora. A questão dos mestres de cultura popular é dramática. O Brasil não valoriza seus mestres. E um mestre de 80 anos dificilmente vai acessar um edital. Enquanto o patrimônio material (de origem europeia) é preservado e valorizado, o patrimônio imaterial (negro, indígena) tem que se virar. É uma sacanagem enorme. Os mestres do samba, da capoeira, dos reinados, dos terreiros, eles vivem no aperto. E são eles os guardiões da nossa cultura. Tá ali a fonte onde todo mundo bebe.

2 – De que maneira o cenário artístico e cultural da cidade compete para dificultar ou favorecer que você sobreviva da sua arte?
Belo Horizonte é a capital do estado com o terceiro maior PIB do Brasil, mas a política cultural aqui não chega nem perto de corresponder a esse tamanho. A prefeitura, desde a gestão do Juca Ferreira, faz um esforço para fomentar produções interessantes, de periferia, de vanguarda, com diversidade, mas o montante de recursos é pequeno. E o governo do estado não enxerga a vastidão da cultura mineira, o poder que ela tem de ganhar o mundo, e investe uma miséria, tem uma visão utilitarista das artes. Até hoje as pessoas dizem que Belo Horizonte é uma roça grande, ou uma roça iluminada, eu acho que é e não é. Porque é uma cidade imensa, mas as pessoas, os artistas, às vezes são provincianos, mesquinhos. Tem gente que morre de ciúmes quando vê um colega com um trabalho que repercute. Em vez de a galera se juntar pra fazer a cena crescer, tem uma turma que só pensa no próprio umbigo. E outra coisa é que o belo-horizontino não valoriza tanto o artista local como se faz em outras cidades, como Recife ou Salvador. A gente cultua muito o que vem de fora. Pra fazer sucesso, tem que ser reconhecido fora e depois voltar. Digo isso tudo, mas amo BH e nunca quis me mudar pra São Paulo.

3 – Por outro lado, quais as motivações para permanecer lutando por sua arte? O que te leva a não desistir e, por exemplo, procurar outra profissão como frequentemente acontece?
Eu tive um professor de música, o Kristoff Silva, que disse uma vez que a arte é que te escolhe, e não você a ela. Amo fazer cinema e amo escrever. Acredito muito no que eu faço. Mas eu não sou franciscano, não fiz voto de pobreza. Me formei em jornalismo, há dez anos trabalho com cinema, audiovisual, escrita e eventos. Escrever é o que eu sei fazer. Não me vejo em outro lugar hoje.

4 – Qual a sua primeira lembrança ligada à arte e o que te levou a escolher esse caminho?
Minha mãe sempre foi apaixonada com MPB, tinha um disco da Maria Bethânia que tocava lá em casa todo santo dia. E meu pai é mais do rock, especialmente progressivo. Eu cresci muito ligado em música, ficava horas mexendo nos discos, arranhei um tanto de bolacha da minha mãe. Ela me conta que um dia eu ouvi a Elis Regina cantando “quando eu morrer, me enterre na Lapinha”, e perguntei se ela já tinha morrido e se tinha sido enterrada na Lapinha. Quando eu descobri a fita cassete, eu ganhei um sonzinho e descobri um jeito de gravar minha voz na fita. Aí eu ficava trancado no quarto fazendo meu programa de rádio. Meu barato sempre foi contar história. Na canção, na poesia, no cinema, na literatura, eu sempre tive esse ímpeto criativo. E cresci numa casa com muitos livros, muito aberta pra cultura, pra literatura, pra música.

5 – Como estão os seus planos para 2024? Tem projetos na gaveta ou já prontos para serem lançados?
Depois de alguns anos entocado, em 2024 vou sair do casulo com tudo. Está no prelo meu primeiro romance, pela editora Urutau, chama-se Monstera deliciosa. E além disso estou finalizando dois filmes, ambos devem sair ainda este ano. Um média chamado Amadeu, sobre Grão-Mestre Dunga, figura incrível da Capoeira de Minas Gerais e do mundo, roteiro e direção meus, produzido pela Olada Audiovisual com a Almôndega Filmes. E outro, um longa, com roteiro meu, da Lara Passos e do André Di Franco, e direção minha e do André. Chama-se Palimpsesto, é um documentário ensaístico sobre o passado inflamável do nosso país, produzido pela Quarteto Filmes e pela Almôndega.

AMADEU I TRAILER from OLADA on Vimeo.

Foto: Flávio Tavares/O Tempo

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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