Exposição leva obra de Guimarães Rosa e Poty Lazzarotto para a argila

*por Raphael Vidigal

“Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada ‘realidade’, que é a gente mesmo, o mundo, a vida.” Guimarães Rosa

Um nome que se construiu com imagens. “Quem sabe ele tenha feito parte da equipe dos grandes construtores e pedreiros que trabalharam junto do Hiram Abiff na construção do Templo do Rei Salomão”, especula Fábio Brasileiro, com o direito outorgado pelo ofício de dar asas à imaginação. O entrevistado se refere a Poty Lazzarotto, cujo extenso currículo o identifica como ilustrador de obras de Dalton Trevisan, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Gilberto Freire, José de Alencar, Marcos Palmério, Manoel de Barros, Machado de Assis, Franz Kafka, Rachel de Queiroz, Herman Melville, Raul Bopp, e mais.

Mas foi, sobretudo, ao desenhar os livros de Guimarães Rosa, que ele ampliou o poder do imaginário acerca de clássicos como “Sagarana”, “Grande Sertão: Veredas”, “Corpo de Baile” e “Magma”. Fábio Brasileiro dedica a estes gênios a exposição “Poty Lazzarotto nas Artes em Argiloxilogravura: Um Passeio Pela Literatura de Guimarães Rosa a partir da Arte em Cerâmica”, em cartaz no Galpão Cine Horto até o dia 29 de outubro, com entrada gratuita. Em 2024, será comemorado o centenário de nascimento de Poty Lazzarotto, natural de Curitiba, e filho de imigrantes italianos que ansiavam por uma vida mais digna…

“Poty foi o grande e magnífico ilustrador do século XX modernista brasileiro. Na industrialização tipográfica modernista brasileira, ele trouxe para dentro dos livros toda a arte xilogravurista de inspiração sertaneja, nordestina, fonte cultural onde bebeu. Sua produção modernista em termos de ilustração literária é ímpar, embora também suas criações em mosaicos e painéis públicos sejam outra grande contribuição à modernização da arquitetura de cidades”, sublinha Fábio Brasileiro ao apontar a presença de obras do artista espalhadas ao redor do mundo, como em Curitiba, Rio de Janeiro, Portugal, Alemanha, e na França.

Veredas. Atualmente, o conjunto da obra pública de Poty Lazzarotto está tombado pelo patrimônio histórico e artístico da cidade de Curitiba e do Estado do Paraná, mas nem sempre ele gozou de tamanho prestígio com as autoridades. Em 1964, o primeiro mural realizado pelo artista para decoração do prédio da UNE (União Nacional dos Estudantes) na praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, foi destruído pela ditadura militar. Era uma ilustração baseada no livro “O Processo”, de Kafka, em que, da noite para o dia, um sujeito comum passa a responder por um crime que não cometeu, denotando a corrupção institucionalizada e a violência como prática legitimada pelo Estado de ocasião.

“No desenho, gravura, serigrafia e litografia, ele também nos legou importantes contribuições, sobretudo em jornais”, destaca Fábio Brasileiro, que, para compor sua exposição, se valeu de um neologismo, elemento tão caro e quase definidor da obra de Guimarães Rosa. “Argiloxilogravura é um neologismo inventado à moda da formação de palavras em língua alemã, e para dar conta de um exercício de tradução. A xilogravura sempre é tradicionalmente feita em madeira, e eu usei como suporte o barro, a cerâmica. Alguns amigos e conhecedores das artes em cerâmica de Minas Gerais fizeram comentários muito legais, elogiosos, destacando ser original essa sacada que tive, associando xilogravura e argila”, orgulha-se o ceramista e professor. Entre esses amigos ilustres estão Celso Adolfo, Rubinho do Vale, Pedro Paulo Cava.

“O barro foi o primeiro suporte à escrita de que se têm notícias pela arqueologia, no caso, a escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios. Esse mirar para o Oriente, seja africano, indiano ou asiático, faz parte dessa intenção de inovar nas formas de ler e interpretar Guimarães Rosa e Poty Lazzarotto. Se reencarnação for mesmo uma verdade natural, imagino que já fui um dia sumério, egípcio”, diverte-se Fábio Brasileiro, que, no entanto, lamenta o fato de as edições mais atualizadas dos livros de Guimarães terem suprimido as ilustrações de Poty, provavelmente por questões monetárias, contrariando o que foi pretendido pelo autor e seu fiel amigo, “irmão”, ilustrador.

Descoberta. Fábio Brasileiro descobriu os livros de Guimarães Rosa em 1995, ao prestar vestibular para geografia na UFMG. O primeiro encontro literário foi com “Manuelzão e Miguilim”, novelas que integram “Corpo de Baile”. Dois anos depois, em 1997, durante um estágio no COLTEC (Colégio Técnico da UFMG), participou de uma viagem conduzida pela professora Rogata Soares com seus alunos até a cidade natal de Guimarães Rosa. Em Cordisburgo, no interior de Minas, tomou contato com os cenários de algumas obras deste célebre escritor.

“Essa viagem deu início às tantas outras que fiz unicamente para conhecer os lugares de sua realidade sertaneja. Desde lá, já fui a 36 lugares, e também trabalhei na criação de três dos roteiros de turismo literário em Minas Gerais, alguns ainda em funcionamento”, salienta. “Em 1999, fiz uma disciplina de prática de ensino em geografia com o professor Claudinei Lourenço e conheci a novela ‘O Recado do Morro’, de ‘Corpo de Baile’, e, desde ali, não parei mais de viajar e de buscar conhecer Guimarães Rosa e as Minas Gerais de que sua obra fala e descreve”, complementa Fábio Brasileiro, que acumula números impressionantes sobre essa obra monumental, que ele conhece integralmente.

“Algumas de suas estórias li 14 vezes, como ‘Grande Sertão: Veredas’. Outras, li 50 vezes, como é o caso de ‘O Recado do Morro’. Tudo aquilo foi tão importante para mim que, ao final da graduação, fui fazer mestrado em literatura brasileira na Universidade de Brasília, em 2008, logo que voltei de uma longa viagem a Timor Leste”, revela. O contato com a literatura, contudo, veio antes. Aos 9 anos, ele recebeu de presente da irmã, Telma, “O Mistério de Kanitei”, de Assis Brasil. Embarcou nos clássicos Euclides da Cunha, Machado de Assis e Lima Barreto, antes de eleger os modernistas como prediletos, de que cita Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Osman Lins, Drummond.

Pesquisa. Outro modernista que o agrada é Mário de Andrade, que, segundo ele, merece a alcunha também por conta de “suas pesquisas em termos de uma antropologia social da música do Brasil de dentro, profundo”. “Guimarães Rosa, na terceira dentição modernista, aprofundou o legado marioandradino em termos de etnografia e dicionarização da música popular brasileira, sobretudo aquela mantida fora dos compêndios de música erudita e dos centros de formação acadêmica musical nas cidades. E esse aprofundamento tem a ver com as influências africanas, indianas, asiáticas e orientais na conformação da cultura brasileira, sobretudo aquela que nasceu bordejando as veredas e as chapadas, o cerrado e o planalto central brasileiro, do lado de Minas Gerais, do lado pantaneiro, nordestino e amazônico”, avaliza o professor.

Na visão de Fábio Brasileiro, “é de valor inestimável, de muita generosidade, a atitude antropológica do Guimarães Rosa em fazer de seus livros uma espécie de repositório e inventário dessas tradições, estilos e gêneros musicais que resistiram vivendo às margens do mundo oficial brasileiro, litorâneo, do período colonial e monarquista ou republicano, sobretudo os advindos do Oriente, dos negros de África e da Índia. Rosa era um homem branco de olhos verdes e muito amigo dessas tradições marginais”, problematiza. Essa dupla dinâmica formada por Guimarães e Mário de Andrade serie uma espécie de antecessora informal do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), “em termos de registro e formas de salvaguarda cultural”, compara Fábio Brasileiro.

“É muito bonito ver quem na esteira do Rosa se serviu de sua índole de pesquisador e de suas habilidades criativas para fazer música”, enaltece. Por conta disso, há a ideia de produzir em breve, a partir da atual exposição, uma iniciativa que dê visibilidade às músicas compostas a partir da obra de Guimarães. “Há um movimento em termos musicais para dentro dos livros do Guimarães Rosa e há outro, idêntico, para fora, nas interações e reverberações de suas estórias na cultura brasileira no geral, não apenas em termos musicais. Contudo, em termos musicais, a produção de composições declaradamente inspiradas no universo rosiano é gigante!”, afiança, de cadeira, Fábio Brasileiro.

Encontro. “Se reunir toda essa gente num encontro e colocar para tocar e cantar o que fizeram desde o lançamento de ‘Sagarana’, em 1946, teríamos que fazer uma dúzia de encontros, dias e noites inteiros de audição. Mas teríamos que ter na música um Zé Celso Martinez Corrêa para fazer isso!”, brinca, em referência ao dramaturgo morto em julho, aos 86 anos, criador do lendário Teatro Oficina e famoso pelas montagens de espetáculos grandiloquentes e provocativos. Como exemplo dessa intersecção artística, Fábio Brasileiro se vale nada menos do que de nosso maior símbolo musical: o Clube da Esquina, que, em sua opinião, “fez na música aquilo que o Rosa fez em termos literários nas suas fusões de gênero e de formas narrativas”, afirma.

“Tanto é que o Márcio Borges, no livro ‘Os Sonhos Não Envelhecem’, chama de ‘fusion’ certo traço que caracteriza o hibridismo do grupo em seus modos de criação musical. E se você lê o ‘Verdade Tropical’, do Caetano (Veloso), ele diz, logo na abertura do livro, que seu modo de criação tem muito da poética praticada pelo Guimarães, pela Clarice e pelo João Cabral de Melo Neto. E eu me pergunto se ele lia o Osman Lins, toda vez que leio o livro dele”, sugere. Essa obra “aberta, que vai adiante sempre se expandindo feito os rios e veredas da grande bacia são-franciscana, integrando, somando, influenciado”, fala, para Fábio Brasileiro, “de um compromisso com o futuro, de uma certa saudade que é do futuro”. Essa amplidão se verifica em outras áreas artísticas.

“Acredito que Guimarães Rosa seja o maior escritor em língua brasileira também por isso, pela recepção de seus livros em todos os campos das artes e da cultura, da economia criativa, do turismo e do patrimônio, afinal, isso de que falei na música, também se nota no cinema, nas artes plásticas, na fotografia, nos enredos de carnaval, nas práticas de museologia e de turismo literário, nos eventos literários, na moda, na dança, no artesanato, na gastronomia, ou seja, no desenvolvimento socioeconômico em Minas Gerais, sobretudo pelos interiores do Estado afora, como políticas de estado para promoção do turismo e da cultura”, exalta o entrevistado, que relembra o fato de que, desde 2021, Guimarães se tornou patrono da cultura brasileira de exportação empreendida pelo Itamaraty no exterior, a exemplo do que Portugal realiza com Camões e a Espanha com Miguel de Cervantes, para sorte dos gringos, em boa companhia.

Serviço.
O quê. Exposição: “Poty Lazzarotto nas Artes em Argiloxilogravura: Um Passeio pela Literatura de Guimarães Rosa a partir da Arte em Cerâmica”, do ceramista Fábio Brasileiro.
Quando. Até o dia 29 de outubro
Onde. Galpão Cine Horto (rua Pitangui, 3.613, Horto)
Quanto. Gratuito
Agendamento de visitas guiadas:
[email protected]

Foto: Fernando Barbosa e Silva/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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