Entrevista: O livro de músicas de Célia, intérprete dramática

*por Raphael Vidigal

“e no zumbido do aeroplano a voz do céu de verão murmurava sua alma impetuosa.” Virginia Woolf

Os olhos são de Maysa e o humor tem a sagacidade de uma Angela Ro Ro. Apesar das semelhanças com uma que veio antes e outra depois, Célia é cantora peculiar no universo da canção brasileira, a começar pelos “bons modos” com os quais prefere ser conhecida. “Não me conformo em ser o quinto músico de uma banda. Sou a solista interpretando a palavra”, diz. Por isso a alcunha de “intérprete” lhe cai melhor que a de cantora, afinal de contas, “a voz pode ser só um instrumento, como baixo, guitarra, bateria, piano”, ou o “algo mais” que em 42 anos de carreira ela procura, e não raro encontra.

Para 2014 o projeto ambicioso da paulista nascida na capital, mas criada em São Bernardo do Campo, prossegue nesse rumo. Ao lado do ator Marco Ricca e com direção de Jorge Takla – famoso por trabalhar, inclusive, com óperas – ela unirá música e teatro num espetáculo em que “o ator terá que saber cantar e o cantor que interpretar”, afiança. Com “mais de 40 canções no repertório e trechos interligados em que as respostas serão faladas e cantadas”, Célia adianta a presença de “Fala baixinho” de Pixinguinha e Hermínio Bello de Carvalho, unida a “Speak Low”, do alemão Kurt Weill, num mesmo número.

NUANCES
Belo Horizonte será um dos destinos agraciados pela turnê, em roteiro que prevê a contemplação de no mínimo 30 apresentações em diversas outras capitais, como São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, entre outras. No entanto para quem não garantir ingresso haverá outra possibilidade. “Possivelmente lançaremos um DVD. Pretendemos um espetáculo muito grande, cheio de nuances, não apenas um recital nem em cima de textos teatrais, mas tudo ligado à música” esclarece a entrevistada. Além de chorinho e jazz, outros ritmos estarão em cena. “Nunca fui muito ligada a gêneros”, afirma Célia.

Prova disso são alguns dos sucessos da extensa trajetória, que vão do samba de 1935 de Synval Silva “Adeus, batucada”, lançado por Carmen Miranda, à romântica “Detalhes”, de Roberto e Erasmo Carlos, registrada por Célia em 1972, já ao final da fase “Jovem Guarda” dos autores. “Igual gato, joga pra cima que eu caio de pé e canto”, desafia. Mas há um motivo para se ganhar o contorno e a voz de Célia. “A música tem que ser boa. Presto muita atenção às letras, adoro um drama, afinal sou uma mulher grande e forte”, enfatiza para na seqüência listar os poetas preferidos: “Drummond, Clarice Lispector, Neruda”.

OUSADA
O próximo ano certamente não marcará a primeira nem última vez que Célia pisa os palcos teatrais munida da verve dramatúrgica. O modelo seguido teve um dos auges no ano de 1996 quando, a convite do múltiplo artista Zé Maurício Machline, os dois protagonizaram “Os Gordos Também Amam”, com músicas de Johnny Alf, Eduardo Dussek, Vinicius de Moraes, Erik Satie, Lulu Santos, e vários outros. “Por sugestão minha a montagem foi dirigida pela Irene Ravache, uma amiga e profissional exemplar. Adoro trabalhar com direção de teatro, pois permite que o intérprete se projete e ajuda a encontrar o centro”, atesta.

Outro ponto que não poderia faltar à investida é o hoje muito discutido humor, mais ainda quando associado à palavra “política”. “Gosto de me divertir, o Zé Maurício Machline é naturalmente muito engraçado. E o meu trabalho propicia esse prazer, ligado diretamente à felicidade. Cantar ‘certinho’ é legal, mas preferi, desde o início, uma alternativa ousada”, qualifica. Destemida também para tocar na recente polêmica das biografias, a artista é novamente incisiva. “Não existe isso de autorização, censura prévia. Sou a favor da liberdade, tem que liberar. Me assusta essa postura. Parecem mercenários da canção”, avalia.

BIOGRAFIAS
A postura a que se refere a artista é a de nomes ligados ao grupo “Procure Saber”, que contava com Chico Buarque, Gilberto Gil, Djavan, Caetano Veloso, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, e que num primeiro momento adotou discurso que depois se assumiu “radical” e na busca de um “equilíbrio” no que tange ao “direito à privacidade” e a “liberdade de expressão”. “Tenho uma ligação muito fraternal com Erasmo, foi ele quem escreveu a contracapa do meu LP de 1972, me deu duas inéditas para gravar, ‘Detalhes’ e ‘A hora é essa’ e também ‘Nasci numa manhã de carnaval’, que lancei no meu primeiro compacto, de 1971”.

A despeito da discordância de opinião na matéria das biografias Célia continua “adorando o ‘Tremendão’”, e aproveita para comentar o último álbum gravado, “Outros românticos”, em 2011, com canções registradas, mas não de autoria, do parceiro mais tradicional de Erasmo. “Roberto Carlos é muito carismático, então ele coloca um carimbo que faz com que as pessoas pensem que todas as músicas são dele”, explica. “Eu procurei um caminho menos orquestrado, mais minimalista, só com o lado B dessa produção, e tive a ajuda do DJ Zé Pedro e do Thiago Marques Luiz, de um bom gosto extraordinário”, elogia.

O LADO OCULTO
Em 2012 a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo publicou através da coleção “Aplauso” a biografia autorizada de Célia, intitulada “Entre o mundo e a minha voz”, e escrita pelo jornalista Caio de Andrade. Perguntada sobre o título que ela escolheria caso fosse escrita uma biografia não autorizada de sua pessoa, a intérprete não recua. “Sou péssima para nomes, mas penso em algo ligado aos meus discos, por exemplo ‘O Lado Oculto das Canções’” provoca com alusão ao álbum comemorativo aos 40 anos de carreira posto no mercado em 2010, e em que escolheu a dedo canções consideradas “bregas”.

“Eu achava que depois do ‘É O Tchan’ nada de pior fosse surgir na música brasileira, mas não contava com a ‘astúcia’ de Annita, Gaby Amarantos, Naldo e o primor do ‘whisky com água de coco’”, debocha. Dito isto, Célia considera Peninha, Benito di Paula, Jane & Herondy e demais contemplados no disco “verdadeiros clássicos, perto do que temos hoje ‘Não Se Vá’ é quase ‘jobiniano’”, arremata ao transformar o maestro da bossa nova em adjetivo. Nesta música, aliás, Célia cantou na companhia de um velho conhecido. “Ney Matogrosso é meu amigo desde 1972, é sempre aquela delícia!”.

PROVOCAÇÃO
Apesar de conservar intacta a amizade com Ney, o temperamento de Célia não permite perder a piada, e num divertimento ‘puxa a orelha’ do compadre. “Fui eu quem lhe apresentei o ‘Tango para Tereza’, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, que eu conhecia com a Ângela Maria, e ele espertamente gravou logo. Como não sou repetitiva, escolhi outras músicas para o meu repertório”, conta. Para a artista canções de característica assumidamente romântica deixaram de ser “palavrão para uma dita alta classe da nossa crítica”, e prossegue: “Esse trabalho exigiu que fôssemos muito minuciosos para não cair na esparrela”.

Ainda a respeito de “O Lado Oculto das Canções”, Célia lança outra provocação. “Tem gente que canta e não entende o que está cantando. Ás vezes o autor tem uma despreocupação, o que não se permite ao intérprete. Tenho a impressão que Caetano Veloso achou que fosse Peninha quando gravou ‘Sonhos’, pois cantou errado, rindo, quando a história exige um ar de revolta”, e invoca o próprio registro, com cada palavra destilada sob o poder da ironia. Por essas e outras Célia não objeta liberdades. “Já pensou a biografia da Judy Garland só com as coisas boas, quanta falta de graça?”.

INOVADOR
Uma rápida olhada na discografia da cantora é suficiente para se detectar característica que sobressai em toda a obra. “Todo intérprete deve ser preocupado com passado, presente e futuro”, ensina. Por isso Pedro Caetano, Peterpan, Adoniran Barbosa, Ary Barroso, Assis Valente, Wilson Batista, Bide & Marçal e vários outros costumam caminhar de mãos dadas a nomes aparentemente desconhecidos do público em geral na voz de Célia. “Tenho projeto de realizar um trabalho só com gente nova, autores jovens, uma garotada. Estudei a música e o som de muitos rapper´s e mc´s”, revela.

A base desse mergulho em ambiente totalmente inovador foi o lendário disco do instrumentista, maestro e compositor Arthur Verocai, de 1972, também arranjador de diversos artistas brasileiros, incluindo Célia. “Esse álbum foi redescoberto por DJs americanos, e por conta disso passou a valer fortunas, de 2 mil reais pra cima” garante e emenda na seqüência: “Esse pessoal também gosta muito de mim, somos o elo da corrente. Pretendo ir de Wilson Batista a Emicida”, destaca, sem perder a oportunidade de citar cantoras da nova safra que admira. “Gosto de Tulipa Ruiz, Mariana Aydar, Fabiana Cozza”.

ILUSTRES COMPANHIAS
“Faço no tempo soar minha sílaba”, frase da música de Caetano Veloso que dá nome ao disco dividido com o violonista Dino Barioni em 2007, propiciou a Célia oportunidade de entoar o canto ao lado de ilustres companhias, escolhidas, claro, por ela mesma. “Zélia Duncan é grande cantora, uma das minhas preferidas, e ótima pessoa!”. Outra participante especialíssima é Lucinha Lins, ao lado da qual prestou homenagem ao centenário de Carmen Miranda no espetáculo “Na batucada da vida”, em 2009, que contava ainda com Virgínia Rosa. “Lucinha e eu somos amigas há anos! É uma festa sempre!”, anima-se.

Além de conhecer com profundidade o repertório de Carmen, de quem gravou, entre outras, “Recenseamento”, é imperioso para a artista enumerar cantoras que a encantaram desde a mais tenra idade aos dias atuais. “Dolores Duran, Dalva de Oliveira, Elis Regina, Maysa”. Desta última guarda um elogio rasgado com orgulho e gratidão. “Quando surgi no programa de calouros do Flávio Cavalcanti, a Maysa era jurada, e ao ser perguntada por ele o que tinha para me ensinar, disse: ‘com uma cantora como Célia a gente não ensina, aprende. Claro que ela estava sendo generosa e gentil”, relembra.

MEMÓRIA
Se em 1970, no instante em que Célia apareceu pela primeira vez de corpo, alma e voz de sobra para o grande público brasileiro, a atração televisiva “Um Instante Maestro!” convidava a subir ao palco nomes como Ivan Lins, Gonzaguinha e outros, hoje a decepção da intérprete com o que se oferece é latente. “Seguimos o parâmetro da televisão monitorada, uma tristeza. Todas as cantoras do ‘The Voice’ (programa de calouros da Rede Globo) são péssimas, desafinadas. Ter Cláudia Leitte ensinando interpretação é fim de carreira”, desabafa para repreender o “festival de repetição do modelo americano”.

Para quem se prestou ao longo da carreira a preservar a memória afetiva do cancioneiro nacional, é “um absurdo o imediatismo acabar com a nossa cultura desse jeito. Temos um idioma diferenciado, com uma terminação oposta ao inglês, por isso não cabem essas impraticáveis firulas vocais que temos nos habituado a ver”. E oferece, de bom grado, uma dica: “Essas pessoas precisam ouvir Milton Nascimento. Mas a cultura está na mão dos canalhas, e a ‘escola’ de música que esse tipo de gente dá é terrível, ensinam uma maneira tupiniquim de querer seguir o que é feito lá fora sem competência”, opina.

ENTRETENIMENTO
Embora sem ver “no fundo, muita saída” para o atual cenário da canção brasileira, Célia aponta saídas e setas que lhe parecem interessantes. “Temos de continuar combatendo, falando e divulgando músicos de grande envergadura, como o Filó Machado, que tem um filho de dez anos que sabe tudo de harmonia, mas é um no meio de um milhão”, lamenta, e não esquece a menção honrosa à qualidade musical do jovem cantor Filipe Catto e de rememorar no âmbito instrumental o falecido Moacir Silva, arranjador e saxofonista natural de Cataguases. “A chave de tudo é informação”, determina.

Saudosa da época em que “’Começar de novo’ (música de Ivan Lins e Vítor Martins) era tema de abertura da novela”, Célia assume sentir “muita falta de mais espaço nas mídias tradicionais”, e crava o voto a favor da convivência plena entre arte e entretenimento. “Infelizmente essas duas esferas estão em desarmonia hoje, mas elas só podem e devem conviver, tem de se unir. Há uma falta generalizada de letras consistentes. Precisamos regar essas plantas”, aponta para em seguida, com efeito, lançar frase simbólica do momento atual brasileiro: “Se na vida estamos acuados, imagina na música”.

PROFISSÃO
Há pouco tempo Célia lançou outra provocação, ao escrever em rede social que gostaria de “mudar de profissão por ver tanta coisa ridícula por aí”, e pensava em ser “gerente de loja”. No entanto tudo não passou de um susto, e a intérprete de sucesso com “Onde estão os tamborins?”, de Pedro Caetano, cujo povo, segundo ela mesma, “adora”, e admiradora de Frank Sinatra, em especial na execução do clássico “Strangers in The Night”, ainda pretende dar muita volta nos violões por aí. “Não resisto a um pagode, sou fã de primeira hora da garotada maravilhosa do ‘Quinteto em Branco & Preto’”, evoca.

Com ouvido exigente, de colocá-lo a serviço da “melodia à exaustão”, a cantora pontua: “Minha informação é de jazz, mas a minha formação é samba, como, aliás, toda a música brasileira. A bossa nova não deixa de ser um samba lento. E Ary Barroso que eu saiba, nunca compôs tango. Mesmo o nosso rock, o nosso rap, a nossa marcha-rancho, todos bebem do samba até o fundo!”, discorre. Descontente com a homenagem prestada a Cazuza neste Rock in Rio, fala: “Ele era um príncipe talentoso, e muito chato com suas músicas, preferia um tratamento mais reto, simples, não teria gostado”.

ÓPERA
Por fim, para que não falte um só pingo no i, estende os braços à ópera de Bizet, “Carmen”, pois Ravel e Puccini a “deixam arrepiada” e “Strauss tem valsas maravilhosas”, mas, em sua vida, são suficientes “por uma hora, aí fico feliz, mais do que isso me cansa, ou seja, música erudita, gosto, até a página três”, informa. E que continue se abrindo o livro de músicas da intérprete dramática.

DISCOGRAFIA
1971 – Célia
1972 – Célia
1975 – Célia
1977 – Célia
1982 – Célia
1983 – Meu caro
1984 – Brasil canta na Itália (com Márcia e Zéluiz)
1986 – 15 anos
1993 – Louca de Saudade
1996 – Os Gordos Também Amam (com Zé Maurício Machline)
2000 – Pra fugir da saudade, canções de Paulinho da Viola (com Zé Luiz Mazziotti)
2002 – Célia canta Erineu Maranesi
2007 – Faço no tempo soar minha sílaba (com Dino Barioni)
2010 – O Lado Oculto das Canções, Célia 40 anos
2011 – Outros românticos

Celia-entrevista

Crédito das fotos: Divulgação.

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11 Comentários

  • Parabéns pela reportagem completíssima sobre a Célia. É um deleite saber mais e mais sobre essa Musa que nos encanta há tantos anos, sempre buscando o melhor de sua arte.

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  • uma grande pérola da entrevista : “Eu achava que depois do ‘É O Tchan’ nada de pior fosse surgir na música brasileira, mas não contava com a ‘astúcia’ de Annita, Gaby Amarantos, Naldo e o primor do ‘whisky com água de coco’”

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  • “Impraticáveis firulas vocais”. Até que enfim alguém falou a verdade! Nosso idioma não se presta pra isso. Só poderia sair da boca dessa excepcional e experiente Célia, maravilhosa.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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