Entrevista: O Grande Amor de Ana Terra

“Amor, meu grande amor
Não chegue na hora marcada
Assim como as canções
Como as paixões
E as palavras” Ana Terra

Ana-Terra

Não é por acaso que as letras de Ana Terra parecem cartas de amor. Embora muita gente não saiba é ela a mulher por trás de versos cantados na boca de Nana Caymmi, Milton Nascimento, Angela Ro Ro, e vários outros. Pois como num passe de mágica tudo começou de forma inesperada, até para a dona do condão. Tanto que ela tem dúvidas em considerar qual a primeira letra de música composta, mas nenhuma em apontar a mais especial dentre todas. “‘Meu menino’, por ter sido apenas um bilhete que deixei para Danilo Caymmi quando começamos a namorar, nunca imaginando que um dia ele musicaria e seria gravada por Nana e Milton”, revela.

Com a espontaneidade e despretensão dos grandes compositores, Ana desfia mais contornos dessa história. “Era apenas uma forma de dizer que adorava seu lado brincalhão de moleque e que meu amor não significava uma posse. Muitas pessoas me dizem que é tudo que uma mulher gostaria de dizer para um homem e que um homem gostaria de ouvir”. Como se não bastasse, além da aclamação popular, a canção recebeu o aval do sogro da letrista, aquele considerado o maior compositor da Bahia, e um dos imortais dentro do cancioneiro nacional. “Da minha parceria com Danilo, essa era a que Dorival mais gostava” orgulha-se.

AMOR
No momento, Ana continua mergulhada nas letras, campo onde se sente fértil. Para 2014, a novidade é a empreitada no cinema e nas artes cênicas. “Incentivada pelo cineasta Luiz Rosemberg, que acabou fazendo um documentário comigo, comecei a escrever roteiros de filmes e peças teatrais”, conta. Apesar de iniciante no ofício, Ana já foi premiada com o roteiro para longa-metragem “Os Campos de São Jorge”. No entanto, tudo permanece inédito, inclusive aquele que ela define como o seu “xodó”. “É o musical que criei sobre amor na internet, com trilha original em parceria com Eudes Fraga, um grande talento musical”, elogia.

Como não poderia deixar de ser o título escolhido para o rebento preferido é o mesmo de seu maior êxito radiofônico, “Amor, meu grande amor”, parceria com Angela Ro Ro, que se encarregou de colocar melodia na letra. Sobre o relacionamento entre as duas, Ana admite uma forma ambígua de conexão. “Não somos próximas no sentido de convivência, mas mantemos laços fortes de carinho porque tivemos essa filha generosa”, diz referindo-se à música. Que, no entanto, não é a única da família, embora seja a mais conhecida. “Fizemos também ‘Quero mais’ e ‘Paixão’. Angela não precisa muito de mim porque é excelente letrista. Mas, quem sabe, outras virão”, arrisca.

HOLOFOTES
Pode-se dizer que Ana Terra pertence àquele time de compositores que tem suas músicas mais associadas, segundo o senso popular, àqueles que as registraram na condição de cantores. Com um agravante. Ela não canta nem toca qualquer instrumento. É uma letrista convicta. Apesar disso, apresenta menos queixas do que agradecimentos. “Acho estranho as pessoas gostarem de uma obra e não saberem os autores, eu sempre quis saber”, avalia. Mas logo em seguida apresenta o lado otimista. “Em relação aos holofotes, não. Gosto do trabalho solitário, sou introvertida, não tenho vocação para os palcos e a vida nômade dos intérpretes”, destaca.

Uma única vez sentiu algo diferente quando se tornou protagonista para a plateia. “Gostei do palco no projeto ‘Poeta mostra a tua cara’, da Solange Kafuri, onde se apresentavam letristas como eu, que não tocavam nem cantavam”, apesar da identificação isso não a livrou de uma surpresa. “Descobri que eu era a única mulher. Foi bacana. E sempre estou num palco quando participo de debates e palestras, disso gosto muito”, avisa ao mencionar a investida nas áreas sociais da cultura. Ana trabalhou na AMAR (Sociedade de direitos autorais), na ONG Viva Niterói, e integrou a comissão para implantação do Canal Comunitário da TV Cidade de Niterói.

LITERATURA
Como um só projeto não é o suficiente para ocupar o coração e a mente de Ana, ela também tem se enfronhado no universo da prosa. “Recentemente conheci um escritor de Porto Alegre, André Bolívar, que promete ser um grande romancista. Tem bagagem, estilo e talento. Não acredito em quem escreve sem ler ao menos os clássicos”, pondera. E que ninguém confunda isto com formação acadêmica. Ela mesma, apesar de não tê-la, e de se considerar com “pouco estudo”, sempre se embrenhou por conta própria no “melhor da poesia”, como assiná-la nas citações. “Carlos Drummond, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Armando Freitas, Ana Cristina Cesar, Adélia Prado, Mario Quintana”.

Apesar de ávida leitora do gênero, Ana faz questão de ressaltar algumas diferenças. “Poesia é o gênero sublime, o mais difícil, é só a alguns é que tal arte se consente. Não sou poeta nesse sentido, sou poética no sentido grego da origem da palavra: poíesis que significa criação. Sou letrista que é outra praia, isso faço bem. Cometo alguns poeminhas que são mais uma terapia que uma arte. Uma forma de me expressar”, conclui. Atenta ao contemporâneo, a artista espalha para as novas gerações a sua obra. “O Bolívar me convidou a escrever um capítulo de um texto seu ‘O filho de ninguém’, uma narrativa em primeira pessoa de um personagem masculino árido, difícil, violento”, afirma.

OPOSTOS
Para quem não a conhece na intimidade e não a identifica com o teor de suas canções, Ana entrega que este personagem é o “oposto” de si. Mas como a literatura é interessante ele logo “tomou conta” da entrevistada, que diz: “Dormi com ele, sonhei com ele, acordei e escrevi de um só fôlego”, recorda. Quem quiser conferir a aventura pode acessar a página “Litterarum in Actione” no Facebook. Sobre o encontro com André Bolívar, ela reitera que vem mais por aí: “Acho que será uma parceria fecunda”. E não é de se esperar pouca coisa, pois os mestres de Ana na área vão de “Machado de Assis, Érico Veríssimo, Eça de Queirós, Lucio Cardoso, José Saramago, Lígia Fagundes Telles”, etc.

Para aqueles cuja menção deve ser especial ela reserva título e autor do livro. “‘O Vermelho e o Negro’, de Stendhal, os contos de Leon Tolstói, ‘A Montanha Mágica’, de Thomas Mann, ‘Memórias do Cárcere’, de Graciliano Ramos, ‘Budapeste’ e ‘Leite derramado’, de Chico Buarque, ‘O Livro das Ilusões’ e ‘Noite do Oráculo’, de Paul Auster”. E para quem pensa que a cabeceira de Ana fique um dia vazia, engano completo. “Finalmente estou me aventurando em Proust, uma obra prima extensa que requer um espaço interno atemporal para recebê-la. Tenho muita facilidade em síntese, que é uma letra de música, Proust é o oposto”, que é como diz o ditado, lá vai Ana de olhos dados.

CENA ATUAL
Como uma criança que não quer se desgarrar do brinquedo preferido, Ana pede mais um tempo para falar de Proust, e sublinhar tal admiração. “Uma maravilha descritiva de detalhes como o início de ‘Os Sertões’ de Euclides da Cunha”, arredonda. Letristas, ela prefere não discriminar, para não cometer o pecado de esquecer nenhum, afinal de contas “minha geração foi privilegiada com tantos talentos, citar alguns seria injusto com todos os outros que escreveram a trilha sonora da minha vida”, realça. Isso acontece porque houve aquele “casamento perfeito entre música e letra, como se fosse uma só carne e um só espírito”, para Ana o fundamental em toda letra de música.

Processo sobre o qual ela discorre, como de habituée, na canção “Parceria”, feita em dupla com Eudes Fraga, seu cantor preferido, ao lado de Zélia Duncan. No entanto, o cenário atual já não lhe arranca suspiros e arrepios como antes. “Da cena do momento conheço pouco, porque o que toca nos rádios e TV’s pra mim é quase tudo porcaria. Aliás, nem tenho mais esses aparelhos para não contaminar minha aura”, ri-se. Para em seguida tecer saudáveis considerações a respeito. “Sei que tem gente fazendo coisa boa por esse Brasil afora, sempre ganho CD’s nas minhas viagens quando faço palestras sobre questões da área musical, seria também injusto citar alguns”.

REPERTÓRIO
Apesar da primeira negativa, Ana logo se aventura a promover alguns nomes deste cenário novo. “Dos que já tem alguma estrada, mas sem espaço na grande mídia, amo o trabalho do Fred Martins e Marcelo Diniz. Da cantora e compositora Juliana Caymmi, que sendo minha filha e do Danilo herdou talento para compor, escrever e cantar, e tudo muito bem, honrando o sobrenome do avô”, considera. Para estender os diâmetros e horizontes Ana vai até o extremo norte do país. “Conheço há algum tempo e gosto muito da Patrícia Bastos, do Amapá, e do violão de Gerson Araújo, do Pará. Conheci recentemente a Ninah Jo e já rolou uma parceria, e também a portuguesa Suzana Travassos”, diz.

No entanto, algo não anda bem no reino da música brasileira de grande circulação, que no passado contemplava nomes que sempre gravaram canções de Ana. “Quando comecei o jabá ainda não estava instituído e os programadores de rádio e TV tinham autonomia para escolher o repertório que seria tocado. Havia de tudo, havia diversidade. Então dava para viver de direito autoral, sim. Se você fosse gravado por intérpretes de grande alcance como Elis Regina, Maria Bethânia, e eu tive esta sorte”, rememora. Outro fator de mudança é o que ela chama de “farra dos downloads. Como disse Cacilda Becker: não peça de graça a única coisa que tenho para vender”, apela.

POLÍTICA
Na área da política, Ana tem uma posição definida. “Minha veia humanista devo às ciências sociais e à filosofia, embora não tenha inteligência do tipo pensamento abstrato. Então tenho dificuldade para ler e entender textos muito complexos, que exigem um grande esforço da minha parte”, admite. Para isto ela não se furtou a pedir a ajuda do professor Júlio Tavares, antropólogo da Universidade Federal Fluminense, que a aceitou como ouvinte na Pós-Graduação. “Sou elemento terra e trabalho não me assusta, me fortalece. Vou pinçando aqui e ali e encontrando pessoas pela vida que me iluminam”, agradece. Por essas ondas tomou contato com autores que a encharcaram.

“As leituras que mais me emocionaram foram ‘Barbárie e civilização’, de Engels, ‘A História dos Homens’, de Engels e Marx, ‘O futuro dura muito tempo’, de Althusser, ‘As palavras’, de Jean-Paul Sartre e as ‘Obras escolhidas’ de Walter Benjamim”, enumera. E para provar que a relação com os livros vai além da atividade intelectual, Ana Terra arremata: “Devo muito aos homens da minha vida, e o principal deles é o psicólogo suíço Carl Jung. Fui até Zurique para olhar o lago que ele olhava. Devo à Jung e ao estudo da astrologia minha saúde mental”, classifica. No início da década de 1990, Ana passou a estudar a fundo a astrologia e deu consultas na área.

MULHERES
Hoje em dia Ana só utiliza a astrologia para si e os amigos próximos, devido à exploração que ocorreu em cima da crença. Outro lugar que passou a receber um tratamento indevido, principalmente sob o olhar daquela que sempre teve a elegância como um dos princípios, diz respeito à figura feminina na música brasileira. “Minha geração lutou e abriu caminhos para ocuparmos o lugar de sujeito na sociedade e as gerações seguintes voltaram ao papel de simples objeto. Com exceções, claro. As mulheres são tratadas na música atual de inúmeras formas. Desde o tempo da delicadeza ao da baixaria, mas das últimas mantenho distância, sinto vergonha deste retrocesso”, afere.

Entre as mulheres que Ana admira, um time de primeira ordem. “Com a Marina Lima tive uma parceria leve e gostosa. Ela foi até minha casa na Gávea com o violão e tocou a música, queria que eu fizesse na hora. Mas eu: não, querida. Grava aqui, que minha escrita é absolutamente a sós. Sei que muita gente trabalha junto, mas eu não sei. E assim nasceu ‘Ensaios de amor’, que ela gravou no disco ‘Fullgás’, e o Emílio Santiago depois regravou”, recorda. Já com Elis Regina, Ana guarda as cicatrizes do último encontro. “Conversamos a tarde inteira sentadas no tapete da sala. Ela estava muito triste, e trocamos confidências como velhas amigas”.

BÊNÇÃO
Apesar dos poucos encontros, Ana se lembra de Elis Regina como uma pessoa sempre muito gentil. Naquela tarde, em São Paulo, a entrevistada combinara de deixar na portaria da cantora uma fita com músicas novas para o próximo disco. “Mas quando o porteiro tocou o interfone, ela pediu para subir e almoçar com ela”, detalha. Após o bate-papo, Ana pegou o avião de volta para o Rio de Janeiro e foi acordada, ao chegar, por um telefonema do primo e cantor Pepê Castro Neves. “Ele me disse: Elis morreu. Foi um grande choque. Chorei, chorei, até ficar com dó de mim”, lamenta utilizando os versos finais de um grande sucesso de Cauby Peixoto, “Bastidores”, de autoria de Chico Buarque.

Com história semelhante no painel musical brasileiro, de desbravamento e pioneirismo de caminhos para as mulheres na música, Chiquinha Gonzaga também abençoou e recebeu a bênção da letrista. “Foi a partir de um convite da Olívia Hime para letristas contemporâneos trabalharem sobre as melodias de um disco que ela faria com obras da Chiquinha. E o Francis Hime levantou partituras e me mandou duas músicas para escolher. Escolhi as duas, claro”, diverte-se. As músicas em questão são “Genesis”, uma valsa, “em homenagem à minha estreia como avó”, e “Revês”, esta “uma homenagem ao grande amor de Chiquinha, um menino que a idolatrava e com ela viveu até o fim da vida”.

O VENTO
Voltando ao começo, Ana finalmente responde à primeira pergunta. Afinal, qual teria sido a primeira letra de música composta intencionalmente? “Se não considerar ‘Meu menino’, que a rigor foi a primeira, seria então ‘Contra o vento’, primeira música gravada também”. Tudo foi feito em casa, com capricho e cuidado. Danilo Caymmi, à época companheiro de Ana, “tinha muitas músicas sem letra e gostava das coisas que eu escrevia num caderno. Perguntou um dia se eu não queria tentar. Então tocava no violão, na cozinha, enquanto eu preparava alguma coisa. Aí então aprendi a melodia, escrevi num papel e perguntei: vê se isso serve”.

A resposta não é mais segredo. Serviu, ficou o tempero perfeito. “Encaixou tudo e o Danilo adorou”, relembra Ana. “Lembro que o Bebeto do ‘Tamba Trio’ foi lá em casa, na época morávamos no Vidigal, reduto e residência de vários artistas. Ele estava escolhendo repertório para o próximo disco e escolheu essa, ‘Contra o vento’. Ter a primeira música gravada por esse grupo maravilhoso é ser agraciada pelos deuses”, relata modesta. Alegria que contrasta ao que pensa sobre programas como o ‘The Voice Brasil’, da rede Globo. “Só vi uma vez e bastou para saber que era mais um ‘Big Brother’, fórmula importada. Ridículo, brasileiros cantando em inglês”, desabafa.

O TEMPO
Escolada no ramo musical, Ana tece as últimas considerações para desaprovar a atração global. “Quando a música é brasileira os arranjos são todos iguais, na fórmula americana. Que nos Estados Unidos, perfeito, é a cultura deles e fazem bem. Mas aqui, aquela gritaria soa estranha. Só dá para reconhecer que temos grandes cantores, infelizmente se sujeitando a esse ritual de humilhação para conseguir um trabalho. Que nem isto terão porque são excluídos logo que vier a próxima atração”, aponta. Com um cem número de canções gravadas, e dois livros lançados, um de poesia, “Letras & Canções”, outro de prosa, “Estrela”, a entrevistada não tem pouco lastro para opinar, pelo contrário.

Inclusive carrega no nome uma coincidência nada aleatória, que não deve passar despercebida nem ao mero acaso. “Coincidência. Sou Ana, signo do elemento terra, meu Terra é sobrenome materno e Borba do meu pai. Mas eu escolhi usar o da minha mãe em homenagem sim ao Érico Veríssimo e ao Rio Grande do Sul, que adoro e onde tenho parentes”, finaliza a Ana Terra deste romance, ambientado no tempo da fantasia e da canção verdadeira, contra o vento ela crava no espaço as marcas de um coração de menina, cuja obra se eterniza entre bocas e dentes e sons e constelações. O grande amor de Ana Terra: poetiza.

Ana-Terra-entrevista

Raphael Vidigal

Fotos: LC Varella

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5 Comentários

  • rapha, a-do-rei a entrevista com a ana terra. muito boa, muito completa, extensa e interessante sempre.

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  • Coisa linda esse seu texto falando e ressaltando a grandeza de Ana Terra. Tenho profundo respeito e devoção a essa gente que trabalha “nos bastidores”, que não tem a imagem relacionada ao trabalho…Sempre achei curiosa essa figura de nome forte, Ana Terra, personagem do Tempo e o Vento, que escreve letras tão sensíveis e belas. Parabéns Raphael pela sacada e pela boa escrita. Sempre com sacadas pertinentes e bem elaboradas.
    Compartilharei!

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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