Entrevista: Aos 70 anos, Leny Andrade segue a trilha do jazz

*por Raphael Vidigal

“iluminada por luzes roxas dispostas nos cantos, ofuscava os olhos com uma brancura que só podia ser comparada consigo mesma, algo que ultrapassava o desejo e o sonho humanos.” F. Scott Fitzgerald

Ela se intitula “queridinha dos músicos”. Não por acaso. Como faz questão de ressaltar, além de cantora profissional é formada em piano clássico. Leny Andrade chega aos 70 anos de idade no dia 25 deste mês, com a força e o vigor de quem está só começando. E uma agenda de colocar inveja em qualquer iniciante. Nova York, nos Estados Unidos, Trancoso, na Bahia, e Rio de Janeiro estão no roteiro.

O primeiro voo é para a cidade americana. De 13 a 17 de fevereiro, a intérprete se apresentará no palco do Dizzy’s Club Coca-Cola, acompanhada do “Nilson Matta’s Black Orpheus”, formado por Nilson Matta (baixo), Steve Wilson (saxofone), Klaus Mueller (piano), Alex Kautz (bateria) e Fernando Saci (percussão). O repertório é centrado na peça ‘Orfeu da Conceição’, de Vinicius de Moraes. Da lavra do ‘poetinha’, cujo centenário de nascimento é celebrado este ano, Leny destaca a “paixão por ‘Valsa de Eurídice'”.

BEM ACOMPANHADA
Leny pode se gabar de ter sido sempre bem acompanhada na carreira, iniciada em 1958, como crooner da orquestra de Permínio Gonçalves. Se no dia 2 de março a apresentação irá saudar Roberto Menescal, no Rio, antes, em 20 de fevereiro, a artista terá em Trancoso a companhia de César Camargo Mariano, com quem dividiu álbum vencedor do Grammy Latino de 2007, em trabalho de piano e voz.

Já o pianista, arranjador, compositor e maestro Gilson Peranzzetta, figurinha fácil em shows e discos da cantora, foi quem deu a dica para Leny não sentir-se “constrangida em ter 69 anos”, segundo ela, “essa idade embaraçosa da qual me livro”. Durante um espetáculo, o habitualmente tímido músico, arrancou, da cantora e da plateia, uma sonora gargalhada. “Ele me saiu com essa, disse: ‘Leny, essa idade não tem nada de mal, é simplesmente uma posição!”.

ALMA MÍA
Outro trabalho premiado de Leny Andrade foi ‘Alma Mía’. Lançado em 2010,  contendo boleros cantados em espanhol, foi eleito em 2011 o ‘Melhor Álbum Brasileiro em Língua Estrangeira’, no Prêmio da Música Brasileira. Entre os concorrentes, estava ninguém menos que Cauby Peixoto, para quem a entrevistada é só afagos. “Aquele homem é um Deus. Está hoje, aos 80 anos, com a mesmíssima voz que tinha na Rádio Nacional, em 1950!”

O título do vitorioso disco também dá nome ao livro lançado, ano passado, sobre ela, pela coleção ‘Aplauso’. ‘Alma Mía’, escrito por Regina Ribas, bisou a graça por uma razão simples.  “Alma é tudo o que ofereço ao público. Quando abro a boca, qualquer dor passa. Canto sem temor. Meus amigos e inimigos me abraçam”, revela, não contendo a inimitável gargalhada. No mesmo momento, confessa admirar o busto de bronze de Tom Jobim, na sala, ganho em show em Copacabana.

EXCENTRICIDADES
Mas a cantora não coleciona somente prêmios. Outra conquista importante são os cerca de 50 quilos de pedra virgem, que ela diz possuir em casa, no Rio. Daí a paixão por Minas Gerais e, especificamente Esmeraldas. O frango com quiabo e o feijão tropeiro também a “derrubam fácil”. Só não se atreve “querer ter nascido nessa terra para não cometer uma falta de delicadeza com os cariocas, que tão bem me tratam”.

Excentricidades à parte, nem só de flores o caminho da reconhecida artista foi traçado. “Na minha vida aconteceu de tudo. Momentos engraçados, terríveis, vários ‘pés na bunda’, tudo isso conto no livro, ‘Alma Mía’”, afirma. Porém o que sobressai, em toda a biografia de Leny Andrade é, certamente, o talento para a música. “Ao cantar, embarco num tapete mágico para fora daqui, viajo até Marte”.

ELITISTA
Inovando o cenário nacional a partir de meados da década de 60, quando a mistura de samba e jazz tornou-se estandarte particular, Leny atribui o rótulo de “elitista” a uma consistente base técnica. “Graças à severidade de dona Ruth, minha mãe, tirei o diploma de piano clássico, com o louvor de quem toca Schubert, Chopin”. Por isso, o respeito por parte dos colegas instrumentistas. “Eles sabem que estão falando com outro músico”, diz.

Para ela, foi “um pecado, uma barbaridade, quando tiraram o ensino de música das escolas. Ainda mais para o brasileiro, que tem uma disposição nata para o som, o ritmo”. Essa seria a circunstância por não chegar ao topo das paradas mais populares. “Não faço música para a massa porque, infelizmente, devido ao que falei anteriormente, ela não tem a capacidade de entender o meu trabalho. Coisa ruim não entra no meu repertório. Michel Teló tá fora”.

MODERNA
O pai de Leny Andrade foi tão importante para sua formação quanto a mãe. “Cúmplice” da filha no repertório dito “moderno” à época, apresentou-a Dircinha Batista, Dóris Monteiro, Dalva de Oliveira e Dolores Duran. “A Dolores foi a primeira cantora que ouvi improvisando ao final de uma música, em ‘Fim de Caso’”, refere-se à presença do elemento jazz na obra da compositora. O salto definitivo, no entanto, foi dado ao encontrar Sérgio Mendes.

Compositor carioca que já fazia sucesso nos Estados Unidos, foi ele quem convenceu Leny a cantar jazz. A troca fez bem aos dois. “Ele dizia que tinha horror a samba, não tocava. E eu o mesmo contra o jazz. Acabamos cedendo e misturando os dois. Ele diz que me deve metade de tudo que tem. Mas quando o desafio a escrever isso num papel, ele recua!”, conta, vez mais, encerrando a frase com a sonora risada.

PRIVILÉGIOS
Ao maior privilégio artístico na vida de Leny Andrade falta um veredicto. Ela se divide entre dois acontecimentos. O primeiro, a adoração do cantor norte-americano Tony Bennett. “Você acredita que aquele monstro sagrado do jazz é meu fã? Ele me compara à Ella Fitzgerald, a maior cantora de jazz do mundo, diz que eu sou a versão brasileira”, e ao rememorar não resiste a sibilar melodias.

O outro teria sido o convite a participar da orquestra do cantor Dick Farney, em 1962. “Eu já era ‘estrelinha’ no Beco das Garrafas (famoso reduto de shows carioca), e larguei tudo para ir cantar com ele, em São Paulo”. A empolgação é justificada. Ela era a única voz feminina do conjunto de eméritos músicos. “Durou um ano e meio essa aventura, o Dick estava paupérrimo, tinha sido expulso de casa pela mulher. Ganhei muito dinheiro e trabalhei que nem louca!”.

MANGUEIRA
Em 1987, a intérprete foi chamada a gravar um álbum dedicado aos 80 anos do sambista Cartola. De cara, estranhou. E questionou: “Temos aí a Beth Carvalho e a Alcione disponíveis. Porque vocês querem a mim?”. A resposta veio de pronto. A ideia era um registro diferente de tudo o que havia, com outros timbres, novos arranjos. O impensável aconteceu. Leny confessa ter “emudecido”. “Pensei: ‘eles estão malucos mesmo!’”.

Mas a surpresa inicial da cantora se transformaria em posterior orgulho. “Realizamos um projeto belíssimo. Não se tem nenhum ‘Cartola’ superior ao meu”. O material, patrocinado pela Coca-Cola, foi entregue no morro da Mangueira para Dona Zica, à época viúva e única herdeira do homenageado. Na sequência, Leny realizaria, em 1995, e nos mesmos moldes, ‘Luz Negra’, somente com composições de outro sambista, Nelson Cavaquinho.

PLANOS
A obra de Leny Andrade disponível em catálogo, pode ser encontrada, CD e DVD, nos sites da Caravelas e Amazon. Somando quase 30 discos,  pretende lançar, em breve, mais dois. Um dedicado a Tito Madi, outro cantando em espanhol composições de Roberto Carlos. Além de prever registros com a ordem artística impondo-se, tece considerações sobre o panorama nacional e o ofício que desempenha.

“Não sou compositora para não prestar o desserviço que algumas aspirantes a  coisa nenhuma dão para a nossa música”. Leny admite que se esforça, mas não consegue ir além de Joyce. “Ela, sim, canta e compõe”. Outro amigo lembrado é Johnny Alf, com quem, no final da vida, apresentou-se. “Aquele ‘doido de pedra’, tudo de talento, foi um Deus! Pouca gente consegue cantar ‘Céu e Mar’, ‘Ilusão à Toa’, composições sofisticadíssimas. Eu canto”, finaliza.

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Publicado no jornal “Hoje em Dia” em 14/01/2013.

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9 Comentários

  • Show Show de Leny Andrade, vidigal na Esquina disponibiliza conteúdo de qualidade

    Resposta
  • Oi Raphael Vidigal
    Li sua reportagem que saiu da Leny Andrade no seu site “Esquina Musical”… E a informação que você esta passando sobre o show que a Leny participará em Nova York entre os dias 13 e 17 de fevereiro no Dizzy’s Club Coca-Cola – Jazz at Lincoln Center esta errada. não será o show do Trio Da Paz, e sim do NILSON MATTA, contra-baixista. Será na verdade o show do lançamento do novo CD do Nilson que se chama NILSON MATTA’S BLACK ORPHEUS (no qual foram gravadas as músicas da peça e do filme) que esta saindo pela gravadora norte americana MOTEMA, no qual Leny tem uma participação em duas musicas. Leny participará do show do Nilson como convidada especial pela GRANDE cantora que é. Participará também o grande saxofonista Steve Wilson, pianista Klaus Mueller, baterista Alex Kautz e o percussionista Fernando Saci. Dê uma olhada na capa do CD… que por sinal ficou muito bonita.
    Caso vc queira posso te mandar um CD.
    Feliz 2013 para todos nós.
    Luisa Matta

    Resposta
  • Leny Andrade. Esta é verdadeiramente uma diva da música mundial e não tantas jovens e velhas transloucadas e deprimentes que nem merecem ter seus nomes citados. Muitos sucesso nos seus 70 anos de vida Leny Andrade.

    Resposta
  • Parabéns, Raphael, pelo texto.
    Leny Andrade merece todas nossas reverências pelo talento que é pelo que faz, em especial, pela música brasileira de excelência. Parabéns pelos 70 anos, Leny!!! Vida longa e sucesso sempre!

    Resposta
  • Que luz irradiada por Leny tanto na vóz como no seu sorriso fico maravilhado!

    Resposta

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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