“Mas baby não se adiante, aos meus desejos
Nunca se atrase pro próximo beijo
Não me reprima, não me azucrina
Não me aluga, senão posso ficar uma arara” Lulu Santos
“Sim, eu pedi uma música a ela, mas ainda não recebi”. Intérprete de Tom Jobim, Caetano Veloso, Mallu Magalhães, Arnaldo Antunes, Dorival Caymmi, Jards Macalé, Luiz Melodia, Roberto Carlos e Céu, uma das cantoras mais requisitadas do Brasil assim confirma que pretende registrar, em seu próximo álbum, uma canção inédita da autora de hits como “Infiel” e “Amante Não Tem Lar”. Gal Costa, 72, adianta que o sucessor de “Estratosférica Ao Vivo”, que acaba de ser lançado em CD, DVD e nas plataformas digitais, “sai no primeiro semestre de 2018”. “Irei gravar ainda esse ano”, completa.
Além de Marília Mendonça, símbolo da nova geração de sertanejo universitário chamado por setores da imprensa de “Feminejo” – por supostamente colocar as mulheres em primeiro plano – o repertório vai abarcar músicas de Djavan, Criolo, Gilberto Gil e Nando Reis, feitas especialmente para o primeiro trabalho de inéditas da cantora desde 2015. Com Gil e Reis, Gal ainda realiza, até dezembro, o espetáculo “Trinca de Ases”. “Não posso adiantar muito mais que isso para não estragar a surpresa”, disfarça a baiana.
Reis, aliás, postou na internet “Mãe de Todas as Vozes” como forma de parabenizar a cantora no dia em que Gal completou 72 anos (26 de setembro). A música é outra certeza para o disco novo. “Nando é um excelente compositor, adorei a música que ele fez para mim”, elogia Gal. Os versos finais da canção do antigo titã a definem: “Sou filha de todas as vozes que vieram antes/ Sou mãe de todas as vozes que virão depois”.
Presente. Entre o passado e o futuro, o presente de Gal é o registro do show filmado em São Paulo, na casa Natura Musical. Oriundo do último disco de estúdio, “Estratosférica Ao Vivo” chega aos formatos de disco duplo e DVD enfileirando, nos dois produtos, as 22 canções entoadas por ela em junho deste ano. “Eu queria um show mais roqueiro, afinado com o começo da minha carreira no tropicalismo”, conceitua a entrevistada.
Com roteiro de Marcus Preto, o lançamento traça um panorama da carreira da artista sem perder o foco no disco que dá nome ao trabalho e que, por isso mesmo, serviu como referência. “Sem Medo, Nem Esperança” (Antônio Cícero e Arthur Nogueira) dá o pontapé inicial, enquanto “Jabitacá” (Junio Barreto, Lirinha e Bacteria), “Ecstasy” (João Donato e Thalma de Freitas), “Dez Anjos” (Milton Nascimento e Criolo), “Casca” (Alberto Continentino e Jonas Sá) e outras, permeiam o set list. A única, até então, que nunca tinha sido ouvida, é “Por um Fio”, espécie de bossa nova da lavra de Marcelo Camelo.
“Gostei muito do resultado desse show. Trouxe um público jovem para perto de mim e eu gosto disso, e aí virar um DVD foi um processo natural. Marcus sempre quis que virasse um DVD também, então gravamos. Estou felicíssima com o resultado”, assegura Gal. Claro que, além das novidades, clássicos da trajetória iniciada no mercado fonográfico em 1967 (com “Domingo”, LP dividido com Caetano Veloso), não poderiam faltar.
Sustentada por uma banda de peso formada por Guilherme Monteiro (guitarra e violão), Fábio Sá (baixo), Maurício Fleury (teclados e guitarra) e Pupillo (bateria e programações e produção musical), Gal repete o pique da época do memorável show “FA-TAL: Gal a Todo Vapor”, idealizado por Wally Salomão (1943 – 2003) em 1971, ao interpretar, com roupagens tão modernas quanto as originais, músicas do calibre de “Mal Secreto” (Wally e Jards Macalé), “Namorinho de Portão” (Tom Zé) e, a sempre deslumbrante em sua voz, “Não Identificado” (Caetano Veloso).
“Eu acho que o que passou, passou. Sou muito feliz com o que eu já fiz, mas não fico satisfeita nunca. Quero fazer outras coisas muito importantes ainda. Se não para todo mundo, pelo menos para as pessoas que se conectam comigo, que me escutam”, confidencia. A prova de que Gal mantém o olhar adiante está na presença de outras duas músicas que nunca tinham sido gravadas por ela.
“Cartão Postal”, parceria de Rita Lee com Paulo Coelho, lançada pela autora em 1975 (e regravada por Cazuza em 1989, no disco “Burguesia”) e “Os Alquimistas Estão Chegando”, pérola de Benjor de um ano antes, 1974, que como bem define Marcus Preto no encarte do disco, ainda é “da era Jorge Ben”. “Quando Marcus me trouxe a música da Rita Lee, ela se encaixou muito bem. Eu sugeri ao Pupillo e aos meninos que transformássemos a música do Benjor em um rock, e assim foi feito. Aliás, as duas músicas dele viraram rocks. ‘Cabelo’ (com Arnaldo Antunes), que eu já tinha gravado no disco ‘Plural’ (1990), e ‘Os Alquimistas Estão Chegando’, que eu nunca tinha cantado”, comenta Gal.
Clipe. Colocado no ar na última quinta-feira (9), o clipe da música “Vá Se Benzer”, de Preta Gil, foi retirado do YouTube poucas horas depois. Madrinha da cantora, Gal Costa participa do vídeo que hasteia a bandeira da liberdade, ao colocar o dedo na ferida de discussões recentes, relacionadas à identidade de gênero, racismo e homofobia. “Sou eu/ Que nasce devendo, que corre/ Que é gueto, que é gay, que é pobre/ Homem e mulher”, afirmam os versos da canção, enquanto pessoas se beijam e abraçam. Numa das cenas, Preta, pintada de dourado, toma banho, mas o seu corpo quase não é mostrado.
A faixa está presente no álbum “Todas as Cores”, lançado pela autora, somente nas plataformas digitais, em outubro. “Eu adorei gravar tanto a música em estúdio, quando o clipe com Preta. Ela é minha afilhada querida e quando me convidou, topei na hora”, garante Gal.
Já a reação de internautas que denunciaram o vídeo alegando impropriedade, e que culminou em sua proibição já revista pelo YouTube, causou estranheza na cantora que, durante o período militar, teve que ver amigos como Caetano Veloso e Gilberto Gil exilados em Londres enquanto mantinha corajosamente em sua terra natal os princípios libertários da Tropicália. “Fico assustada com as coisas que estão acontecendo. Nos tempos da ditadura, que vivi com intensidade, essa censura vinha só de cima, dos próprios militares. Hoje, além da censura vir de cima, também vem de pessoas comuns”, compara.
Homenagem. A tristeza perde espaço quando o assunto é a homenagem recebida por ela através do documentário seriado “O Nome Dela É Gal”, dirigido por Dandara Ferreira e transmitido pela HBO, hoje já disponível no mesmo YouTube que protagonizou a polêmica. “Nunca havia recebido convites assim, para séries sobre a minha carreira. A própria Dandara acha que há pouco material sobre mim e, portanto, ela resolveu fazer a série. Aceitei com muita felicidade e acho que ficou muito lindo”, derrete-se.
Com 50 anos de carreira e 72 de vida, Gal admite que o gesto, mais do que merecido, veio na hora certa. “Foi uma delícia rever tudo que fiz. Ver como sou arrojada e tenho uma carreira rica que se mantém fresca e renovada até hoje. Acho este momento mais do que apropriado para rever minha história, e os jovens que gostam hoje do meu trabalho podem se deliciar vendo fotos e imagens minhas de quando também era jovem”, convida Gal, que nos quatro episódios recebe afagos de Tom Zé, Maria Bethânia, Caetano, Gil, Nelson Motta e outros que fizeram parte de sua história, além dela própria dar o seu testemunho. “Os depoimentos todos me emocionaram, quem não gosta de ver que é querida?”, indaga e aproveita para responder, afinal, o que a faz cantar.
“Sei que gosto de música desde bem criança. Minha mãe ouvia música o tempo todo quando estava grávida. Eu sempre soube que seria cantora. Amo o que faço antes de ser profissional. A música precisa me emocionar. Isso é o principal”, destaca, e enumera alguns que são frequentadores de sua vitrola. “Nossa, são tantos. Caetano, Gil, João Gilberto, Milton, Djavan, Nando Reis, Criolo, Marcelo Camelo, Mallu Magalhães”, cita Gal, que jamais dispensa o que está por vir. “Tenho um filho de 12 anos, aprendo muita coisa com ele. Vou fazer uma visita ao Spotify e ao Deezer. Mas ainda gosto do vinil”. Tanto que o disco de inéditas de 2018 sairá também nesse formato. É Gal quem garante.
Raphael Vidigal
Fotos: Bob Wolfenson; e Rafael Cusato, respectivamente.