“A música desce, assim como desce o pesado ramo cheio de flores, pois assim tem que ser, para continuar vivendo, para continuar até a última gota de alegria.” Allen Ginsberg
Vale apostar que pouca gente sabe que um brasileiro nascido em Porto Alegre e criado em Belo Horizonte deu a sua contribuição para um dos filmes favoritos a levarem o Oscar em 2017. Para além da polêmica envolvendo a retaliação ao longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, “Aquarius”, na categoria filme estrangeiro, a imprensa especializada tem se deleitado em tecer elogios e cravar uma estatueta na bolsa de apostas que sempre precede tal acontecimento. Trata-se de “LA LA LAND”, musical dirigido por Damien Chazelle que conta com Emma Stone e Ryan Gosling no elenco. E conta também com Fred Oliveira, músico, guitarrista, produtor musical e engenheiro de som que integra a equipe de mixagem do longa-metragem. “Foi um experiência extremamente gratificante e de muito aprendizado. Tradicionalmente, quando um longa-metragem dessa dimensão chega ao estágio de pós-produção, ou seja, quando o trabalho de mixagem se inicia, já existe uma edição finalizada do vídeo, e a música que acompanha o filme já foi composta e gravada”, diz. O filme tem previsão de lançamento para dezembro.
Para entender melhor qual foi exatamente o papel de Fred no processo ele o explica de maneira didática e, ao fazê-lo, deixa claro o quanto funções aparentemente técnicas contribuem para a estética e o conteúdo da produção, motores de toda obra de arte. “O trabalho do engenheiro de mixagem, descrevendo de maneira simplificada, consiste em coletar todo o material de áudio disponível, como música, diálogos, efeitos sonoros, e sons de ambiência, combiná-lo em uma sessão única, no caso sessão se refere a um conjunto de arquivos gerados pelo software de mixagem, que combina áudio e vídeo, geralmente se utiliza o Pro Tools (ferramenta recorrentemente utilizada para dublagem), e reorganizá-lo de maneira que cada elemento ocupe seu lugar, e fique em destaque em determinados momentos para dar vida ao filme. O diálogo não deve competir com a música, que por sua vez, não deve competir com o vídeo. O objetivo é atingir um equilíbrio para que tudo soe natural, mas, ao mesmo tempo, intensificar o efeito emocional do filme”, sublinha. O musical já garantiu o prêmio de “Melhor Atriz” para Emma Stone no Festival de Veneza.
CARREIRA
Fred confessa que a experiência com “LA LA LAND” foi um pouco diferente justamente por se tratar de um musical. “O primeiro no qual trabalhei. Então quase tudo do que é encenado em locação, é também gravado no estúdio. Acho que a principal diferença entre um projeto musical e um projeto para cinema é que com o cinema existe mais um elemento que guia todas as suas decisões. O elemento visual é o que dita como o áudio deve se comportar. Às vezes isso torna o processo mais fácil, mas nem sempre. Acho que o trabalho musical é um pouco mais livre”, avalia. E já dá a dica que não se envolveu com música por acaso e nem começou ontem. Antes de partir para Los Angeles, aonde atualmente reside, Fred foi guitarrista da banda “In Verso”, formou-se e trabalhou com Comércio Exterior, serviu ao exército e morou no Rio de Janeiro, Pará, Maranhão, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, por conta do serviço do pai, engenheiro civil. Mas a viagem que realmente mudou sua vida foi, valendo-se da metáfora dos portugueses, para além-mar, aonde a vista já não alcança. “Quando tinha 14 anos, tive a oportunidade de visitar um amigo que havia se mudado para Boston nos Estados Unidos com a família”, recorda.
Foi nessa viagem que Fred teve a oportunidade de conhecer a famosa “Berklee College Of Music”, universidade de música local. “Nunca me esqueci daquela imagem. Dezenas de estudantes caminhando com seus instrumentos e praticando na calçada”, ressalta. De volta para Belo Horizonte, Fred lançou com a banda “In Verso” um EP de forma independente e circularam com shows por todo o estado, o que desembocou em videoclipe da canção “Me Desfaz”, veiculado na programação da MTV Brasil, MULTISHOW, e na “Garagem do Faustão”, pela Rede Globo. “Sempre sonhei, desde a adolescência, em me tornar músico. Comecei a tocar guitarra e violão aos 13 anos de idade e alguns anos antes disso cheguei a fazer parte de um coral de canto da minha escola. Sou o único músico da minha família e talvez por falta de conhecimento ou de alguém em quem me espelhar, a carreira musical sempre me pareceu algo distante e incerto”, detecta. Mas é verdade que a única permanência da vida é a mudança, e aquela imagem gravada no coração do jovem estudante seria reacesa anos mais tarde. “Era o começo do meu sonho de ser músico profissional se tornando realidade, e após tantos anos levando a música como um hobby, eu decidi que era a hora de me dedicar de corpo e alma e buscar desafios maiores”.
SONHO
Ele diz como se fosse ontem, ou hoje, pois os acontecimentos marcantes da nossa trajetória mantém sempre a aura da eternidade, mistificados pelo desejo de voltar a elas, a saudade, ou de reencená-las para alçar novos voos. “Fiz as malas e finalmente revi a ‘Berklee’, 15 anos depois, mas dessa vez como estudante. Formei-me em Engenharia e Produção Musical em 2015 e me mudei para Los Angeles, trabalhando com gravação e mixagem”, afere. Um dos motivos cruciais para alterar a rota foi justamente o cenário que se apresentava. “Acredito que existam mais oportunidades para o trabalho com música nos Estados Unidos, o mercado seja maior, há mais acesso a infraestrutura e equipamentos de qualidade. O Brasil é o país onde nasci e fui criado, sempre tive que pesquisar e trabalhar muito para conseguir as informações e os equipamentos que gostava. Trabalhei e me esforcei muito para chegar aqui, e sempre me lembro disso. Procuro sempre representar bem o Brasil fazendo meu trabalho”, tudo isso para não perder de vista o essencial: “Manter o meu sonho vivo”, resume Fred. E a ponte-área continua no dia a dia.
Mesmo distante fisicamente do país de origem, o músico carrega para si os aprendizados de toda uma vida feita de transições e trajetos. “No Brasil, conheci excelentes profissionais e músicos extremamente talentosos, mas que, infelizmente, trabalham muito e não atingiram reconhecimento ou estabilidade financeira com sua arte. Existe um gap (desnível) muito grande entre os artistas nacionalmente consagrados e o restante. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, os artistas nacionalmente e mundialmente conhecidos, vivem bem de sua arte. A principal diferença, no meu ponto de vista, é que há várias outras pessoas no meio, que não necessariamente possuem fama nacional, mas que vivem bem e se sustentam com a música. Não existe um caminho certo e uma progressão previsível na carreira musical, mas é possível viver e trabalhar com música sem passar por dificuldades financeiras. É claro que o trabalho é intenso, por vezes passo de 12 a 15 horas num só dia no estúdio, e alguns trabalhos rendem mais frutos que outros, mas não se constrói uma carreira em um dia”, reitera com a certeza de quem achou o seu caminho certo.
TEMPO
Fazendo a ponte-aérea entre países, mas, sobretudo do tempo, Fred recorre ao passado e lançar olhar ao futuro quando pensa no momento presente. Recorda-se, por exemplo, de quando tudo começou, ou mais ou menos isso. “Tenho algumas lembranças e não sei dizer precisamente qual veio primeiro, mas a mais marcante ocorreu quanto tinha por volta de seis anos de idade. Foi quando descobri três discos dos ‘Beatles’ que eram do meu pai: ‘Help’, ‘Abbey Road’ e ‘Let It Be’. Não sei ao certo, acho que foram presentes de alguém, mas lembro de ouvi-los repetidamente e, apesar de não entender uma palavra em inglês, tentava cantar junto e ficava maravilhado pelas melodias. Esses discos acabaram se tornando meus e ainda os tenho até hoje”, revela. A essas recordações unem-se os aprendizados coletados em tempo mais próximo. “O mundo da música, sobretudo a área de engenharia musical, parece ser restrito e pequeno. Sempre encontramos o mesmo grupo de pessoas ano após ano trabalhando em projetos importantes. Ocasionalmente aparece a oportunidade de trabalhar com alguém já consagrado, com uma discografia impressionante e com décadas de experiência”, observa o músico.
É desta maneira que, aos poucos Fred vai construindo sua rede, ou, como dito pelos norte-americanos “network de relacionamentos”. “É comum que clientes e colegas de trabalho sejam recorrentes e que as pessoas que gostaram de trabalhar com você, voltem a lhe procurar e indiquem seu trabalho para outros. É assim tanto aqui, quanto no Brasil, mas tenho a impressão de que as coisas andam um pouco mais rápidas aqui nos Estados Unidos”, detecta. E o tempo, na música, é fundamental, como disse Vinicius de Moraes sobre a beleza, por isso o entrevistado também já projeta o que vem por aí. Um dos projetos em vista para logo é retomar a carreira como músico autoral. “Sou apaixonado por engenharia de áudio, mas também sou um guitarrista incorrigível. Gosto de compor, criar e tocar. Dediquei a maior parte do meu tempo, nesses últimos cinco anos, a aprender e me aprimorar na arte de produção, gravação e mixagem. Entretanto, tenho uma compilação de composições e ideias musicais autorais que pretendo finalizar e lançar como um disco nesse ano de 2017. Pretendo, também, no próximo ano, encontrar o lugar ideal para montar e equipar meu próprio estúdio profissional”, conta. Ou seja, é bom se preparar.
ARTE
Se a alguém pareça que Fred toma suas decisões por impulso, ou como diria o ditado “no pulo”, equivoca-se. Ele costuma gestar bem seus projetos, e a iniciativa de montar o próprio estúdio é um bom exemplo, nítido em sua própria elucidação. “Desde 2015 tenho propositalmente trabalhado em diversos estúdios de Los Angeles, procurando realizar cada projeto em um lugar novo. Conheci vários lugares e pessoas dessa forma. Porém, hoje tenho uma ideia mais clara do que considero um estúdio ideal para o meu trabalho, no atual estágio da minha carreira. Gostaria também de realizar mais projetos puramente musicais, quero gravar e produzir mais discos. Coincidentemente, nesse ano de 2016 apareceram muitos trabalhos relacionados a cinema e televisão, trabalhei em algumas minisséries, curtas e longas metragens, inclusive tenho outros dois longas-metragens que devo mixar ainda esse ano, um deles é uma produção brasileira sobre a qual terei mais detalhes em breve. Mas para um futuro próximo, mais música”, afiança. Organização é o que não falta nessa miscelânea referendada pela música. Notas e sons assim tilintam.
Apesar de tudo, ou por isso mesmo, já que Fred encontrou caminho para si prenhe de sentido, ele também se dedica à filosofia. Ou, antes, para tecer considerações sobre o valor das atividades que desempenha. “Acho que a arte, entretenimento, cultura e mercado são interligados. À medida que o equilíbrio entre elas se rompe, e o mercado, por exemplo, começa a ser dominante, é apenas uma questão de tempo até que nós como espectadores percamos o interesse e algo novo apareça e imponha uma nova relação de equilíbrio. Assim um novo ciclo se inicia. Sei que vivemos um momento de consumo e descarte igualmente rápidos. A internet, o acesso irrestrito à informação e a velocidade em que essa informação chega até nós, têm reduzido nossa capacidade de concentração. Compramos mais, ficamos conectados 24 horas por dia e as fotos que tiramos não são mais recordações pessoais, mas sim, algo a compartilhar com conhecidos e desconhecidos. Isso é um pouco assustador, mas acredito que ainda estamos num período de transição”, sugere. No entanto, arte e música, apesar de impalpáveis, nos dão esperança.
CRIAÇÃO
Fred Oliveira seguiu o ímpeto de realizar o trabalho não só como ganha-pão e mola propulsora a fim de se atingir desejos futuros, ao fim do ciclo, mas como um fim em si, que encerra, e, por isso, torna plena a experiência diária e cotidiana em cada ínfimo segundo que, como muitos sabem, mas poucos realizam, pode ser o último. Não é de se espantar, portanto, a paixão, com que fala do ofício. Ao espanto deve-se suceder o encantamento. “A arte e o ser humano são inseparáveis. A arte está presente no design do carro que dirigimos, na decoração do nosso lar, no nosso corte de cabelo, no layout do website que acessamos. Seja qual for o seu pensamento sobre a arte que circunda sua vida, é fato que alguém foi ativo na criação dessa arte, e que ela provavelmente foi influenciada por algo que veio antes. Eu particularmente acredito que a arte é o que impulsiona o mundo. Toda nova ideia nasce de uma faísca criativa, e algo novo é capaz de mudar nosso modo de viver e nossa cultura. Já vimos isso com a invenção da eletricidade, invenção do rádio, telefone, televisão, internet e etc. A minha vida não seria a mesma sem a arte, eu não estaria trabalhando com música se não tivesse sido tocado tão profundamente pelo que ouvi quando era criança e adolescente”, considera.
E para finalizar o acorde ele elimina possíveis barreiras que possam ser construídas entre os meios técnicos que sustentam a base das criações artísticas. “Sempre procuro ser otimista e acreditar que a arte tem valor. Meu trabalho é diretamente influenciado pela tecnologia. Ferramentas de manipulação de áudio digital, avanços na fidelidade da conversão de áudio analógico para digital e vice-versa, ferramentas de restauração de áudio entre outras coisas, mudaram drasticamente a forma de se trabalhar com áudio e vídeo. Hoje, é possível iniciar e terminar um disco, ou um filme 100% digital e atingir resultados de altíssima qualidade. Além disso, sou influenciado sim por literatura e artes visuais. A arte é impulsionada por sentimentos, então tudo que leio ou vejo e desperta em mim uma emoção é combustível para criatividade”.
Raphael Vidigal
Fotos: Johnny Walker; e Divulgação, respectivamente.