Eliane Brum utiliza a ficção para se aproximar ainda mais da realidade

*por Raphael Vidigal

“E agora a felicidade mora apenas num fiapo de lembrança” Eliane Brum

Em uma espécie de epílogo, Eliane Brum confessa, ao final de “Os vampiros da realidade só matam pobres”, que a sua intenção inicial era escrever um conto de terror, mas, ao se deparar com uma realidade que a fantasia ainda não havia sido capaz de sublimar, viu-se impelida a retratar os acontecimentos com a tinta da não ficção. No texto, Eliane deixa claro que a doença de Chagas é, antes de tudo, uma doença social e que, portanto, carece de solução política, fato este que conduz a sua atitude como repórter e ficcionista.

Ao informar os leitores de que o horror é real, e não fictício, a escritora e jornalista busca impelir as pessoas a tomarem atitudes reais, no campo social e da política, e não meramente contemplativas. E, para dar a dimensão real do horror, ela se investe da capacidade de ficcionista que não se contém com a mera descrição detalhada e objetiva do que a cerca, mas busca encontrar o âmago das situações e, por meio de uma linguagem metafórica, atingir o real impacto daquelas circunstâncias.

É por meio de imagens criadas através de palavras que ela atinge essa dimensão, numa investigação sensível e psicológica de pessoas das quais se aproxima, que refletem a ampla realidade, numa imersão distanciada que não a domina. É, primordialmente, uma atitude política que a autora decide tomar diante dos horrores que presencia: são crianças, mulheres e homens condenados à morte precocemente, mais do que pela sanha de um inseto pelo descaso social e político com a vida dos mais pobres, que parecem importar menos do que as demais.

Eliane enuncia números e a geografia das circunstâncias. O seu papel, embora precário, é o de dar visibilidade àquela situação e anunciar a gravidade e realidade de fatos que grande parte da sociedade prefere manter na sombra. Para a autora, a realidade é mais impactante e aterradora do que nossa ficção. É como Eliane Brum sintetiza: “A Vinchuca existia, portanto, antes do inferno”.

Visão. Eliane traz uma visão extremamente dura da realidade, o que não a impede de se aproximar com candura e compaixão das personagens que retrata. O que media essa relação é uma percepção de mundo materialista da jornalista, que guia o seu distanciamento, equilibrado em evitar tanto a indiferença quanto demagogias.

Nesse sentido, Eliane nos informa de fatos objetivos, calcados em números, e numa biografia cuidadosa de suas personagens que, ao serem reveladas, revelam também a realidade de toda uma comunidade, do povo pobre e camponês da Bolívia.

Com essa técnica, Eliane fala do todo ao falar da parte. O histórico da Doença de Chagas, e sua circunstância social, também são abordados com a incisiva escrita da autora, que, ao não maquiar a realidade e expô-la sem retoques, concerne dignidade às suas personagens, reais, frágeis, fruto de uma “realidade tão excessiva que ainda não virou história”, escreve Eliane.

Dimensão. Do ponto de vista estrutural, Eliane interfere na cronologia da narrativa e altera o tempo dos acontecimentos, que se revezam incessantemente. A história da menina que implora para ser salva é posta em suspenso enquanto Eliane nos apresenta o drama de outras duas mulheres. O que as une é a tragédia que se abateu sobre aquela região, a infecção pela Doença de Chagas que leva milhares de vidas todos os anos.

Além do que é palpável e visível aos olhos, das circunstâncias físicas das personagens, da geografia e dos dados matemáticos, Eliane acrescenta as nuances de uma análise psicológica e sensível, dado que o ser humano, para além de biológico é, sobretudo, um ser subjetivo.

Ao acrescentar subjetividade ao texto, Eliane consegue alcançar uma camada e dimensão superior ao mero fato físico, matemático, pois, ao aparentemente ultrapassar a realidade ela, na verdade, se aproxima de sua profundidade mais recôndita, oferecendo um relato mais próximo ao humano. “Com esse mesmo olhar vago de quem busca o esquecimento, mas se sabe viva porque dói”, escreve Eliane, num dos exemplos mais claros dessa capacidade.

Interpretação. “E, se acontecesse o pior, a existência estava lá, presa nas palavras, guardada naquela que sobrevivesse”, escreve em outro trecho. Pois, em suma, Eliane elabora informação e análise para descrever aqueles fatos. Ela interpreta os pensamentos, as palavras das personagens, e delas extrai significados, assim como realiza com a paisagem rural e humana diante de si.

Estruturalmente, a autora também interfere na realidade, ao transformar em diálogos cenas que ela presenciou de outra forma, mantendo o conteúdo e acrescentando uma impressão subjetiva da realidade, a partir desta interpretação psicológica, remodelada através de metáforas.

O cerne de sua atuação e escrita é entender qual o papel e quais são as possibilidades da escrita na modificação da realidade, posto que, como autora, essa é a sua maneira de interferir no mundo que, se não pode ser totalmente reestruturado, pode e deve ao menos ser transformado, mesmo que numa mínima condição. Sua atitude não é blasé, ela dispensa o cinismo, ao mesmo tempo em que reflete sobre os limites de suas possibilidades. Eliane Brum comove sem apelar à demagogia; envolve-se sem ser dominada; e mantém o distanciamento sem, com isto, permanecer indiferente. Atua como escritora e cidadã, sobretudo, com dignidade.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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