Documentário sobre moradia estudantil em BH remonta a tempos de utopia

*por Raphael Vidigal

“Todas as utopias se reportam ao que existe e tudo o que existe aspira ao que não existe. O que não existe precisa do que existe – como se fosse a sua face mais oculta.” Ademar Ferreira dos Santos

Não é por acaso que a frase escolhida para abrir o documentário “Pelos Corredores de Nossa Casa” procura explicar o que seria uma utopia. Como um horizonte que nunca se alcança, mas que nos faz caminhar, ela é a grande condutora da estreia do trio Bárbara Ferreira, Lipe Canêdo e Ricardo Murad na direção, ao remontar ao período em que o antigo hospital para tratamento de câncer Borges da Costa, localizado quase no centro de Belo Horizonte e então abandonado, foi tomado por alunos da Universidade Federal de Minas Gerais vindos de todos os cantos do Estado e que não tinham onde morar.

De 1980 a 1998, o espaço se transformou na Moradia Estudantil Borges da Costa, por onde passaram mais de 1.000 estudantes. O filme começa pelo fim, quando a Polícia Federal cumpriu a ordem judicial de desocupação e literalmente enxotou, a tapas e pontapés, com direito a gritos agudos de mulheres sendo carregadas e puxadas pelos cabelos, aquelas pessoas que estavam ali por terem conseguido passar no vestibular e cometerem o crime de não possuir uma casa. A repressão perpassa toda a narrativa, que deixa claro o quanto essa herança maldita ultrapassou o período militar e nos acompanha até os dias de hoje.

Ao lado dela, caminha o discurso dionisíaco, que traz à baila uma época de liberalização dos costumes encampada pelos jovens, quando o fantasma da Aids ainda não chegara para assombrar as experimentações sexuais, e que, como nos conta um entrevistado a determinada altura, as pessoas eram mais abertas umas às outras. “A gente não tinha medo de gente”, diz outra voz. Ao abordar um espaço que deu lugar para a anarquia, a diversidade, o uso de drogas e o sexo à vontade, com portas e janelas abertas durante o ato e banhos coletivos, o documentário tem a virtude de se prestar a escolhas estéticas pouco óbvias, em consonância com a temática. E conseguir informar sem o rame-rame careta.

Imagens de arquivo recuperadas convivem com performances novas, aliando o real ao ficcional. Dos rostos que aparecem em cena, o mais conhecido é o da atriz Teuda Bara, do Grupo Galpão, que também frequentou o Borges da Costa. Há momentos preciosos, como a lembrança do “Dia da Derrubada do Muro” e o fatídico caldeirão de cogumelos que alimentou a barriga e a mente de 40 doidões. Futuros médicos, advogados, engenheiros, músicos, atrizes e atores compartilhavam o que se definia como “democracia instantânea”, resultado da ânsia de uma convivência social mais fraterna e simples, sustenta um depoente.

Tudo aquilo que escandalizava carolas e hipócritas, no Borges da Costa era naturalizado como o corpo humano. O comentário mais precioso, no entanto, é o do homem de rosto lívido e cabelos lisos, escorridos, de óculos, sobre os moradores de rua: “Quando vejo essas pessoas na rua, penso que faltou um pouquinho de dignidade para invadir algum lugar. Porque lugar para invadir tem”, declara. Ou seja, “Pelos Corredores de Nossa Casa”, sobre nosso passado utópico, fala muito ao Brasil que se deu ao desplante de eleger um tolo misógino e sádico à Presidência da República. E que ainda não se recuperou dessa ferida.

Fotos: Reprodução.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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