*por Raphael Vidigal
“Devo meu sucesso a ter sempre ouvido respeitosamente os melhores conselhos, e depois ter feito exatamente o oposto.” G. K. Chesterton
Caymmi, Gil, Veloso, Baby, Moraes, Nogueira, Bosco e Buarque podem ludibriar, numa primeira vista, quem liga o nome à pessoa ou adquire o livro pela capa. Se a sentença seguinte afirmar que os sobrenomes pertencem a Alice, Bem, Moreno, Pedro, Davi, Diogo, Julia e Clara, ninguém terá sido enganado. Herdeiros de artistas famosos, os citados pertencem a uma geração que, ao contrário das que vieram antes, que já chegavam tentando afastar o peso do sobrenome famoso, não só optam por seguir os passos profissionais dos pais, como têm se lançado em empreitadas capitaneadas pelo nome mais famoso do clã. Dono e idealizador da gravadora Joia Moderna, o DJ Zé Pedro dá seus pitacos sobre o cenário atual da música brasileira e alguns sucessos da última hora.
1 – A que você atribui esse fenômeno crescente no cenário musical de filhos que seguem os passos dos pais na carreira artística?
Ao mundo em que vivemos. Hoje, todos querem ser artistas. Com o fenômeno do protagonismo virtual e o tal afã de se tornar um superstar nas redes sociais, o talento deixou de ser o principal requisito, e ter um sobrenome importante pode ajudar e muito nesse embaralhamento de prioridades.
2 – O que você enxerga de positivo e negativo esse tipo de onda?
Como diria a canção, é preciso estar atento e forte. Se você gosta de artista de verdade, deve evitar o deslumbre de um parentesco. Na maioria das vezes, o suposto candidato ao estrelato não chega nem perto do talento de quem ele recorre como herança.
3 – Quem você destacaria nesse cenário?
Sempre digo que Fernanda Montenegro é de fato uma mulher privilegiada porque tem Fernanda Torres como filha. Duas mulheres de trajetórias distintas e espetaculares. Esse “milagre” não acontece todo dia.
4 – Quais mudanças você verifica entre os filhos de músicos de uma geração anterior, como Luiz Melodia e Paulinho da Viola, com os dessa geração, casos de Chico Chico, Maria Rita, Diogo Nogueira, Luana Carvalho, Beatriz Rabello, Pedro Baby, etc.?
A mudança maior é o próprio mundo. Melodia e Paulinho são do tempo da vocação, do inevitável. Naquele tempo, não era considerado boa coisa ser artista, isso estava ligado à marginalidade. Hoje, todos apoiam e na maioria das vezes até consideram como primeira opção para seus filhos se tornarem cantores ou atores.
5 – A nova forma de se consumir e produzir música, com a realidade das plataformas digitais, tem alguma influência nesse cenário?
A facilidade do protools e a possibilidade de se fazer um disco em seu próprio quarto contribuiu fatalmente para o crescimento dos fenômenos musicais de 15 minutos. Teve um lado interessante que foi o de democratizar o comércio de música, mas também favoreceu, em muito, as fraudes artísticas.
6 – Como você particularmente reage quando sabe que um músico da nova geração descende de outro artista já consagrado no nosso cenário?
Vejo sempre com desconfiança. Toda vez que fui desatento e me deixei levar instantaneamente por alguma hereditariedade, me dei mal. Em muitos casos, os “contemplados” pela natureza até começam bem, querendo negar, no melhor sentido, as influências vindas de casa, mas logo em seguida mostram a cara do oportunismo.
7 – O que essa geração tem a ensinar e aprender com os que a antecederam?
Acho que para uma coisa realmente nova acontecer não é preciso vir de lugar nenhum. Não devemos nunca comparar ou apreciar arte por décadas ou sobrenomes. Quero ver e ouvir hoje o que não reconheço nos meus ídolos, para poder construir outros murais de adoração.
8 – A abordagem dos temas, ou seja, composição de letras, melodias, arranjos, em sua opinião, se modificou muito? Para melhor ou pior?
Melhor ou pior não vem ao caso, mas modificações são sempre bem vindas. O que está feito deve ficar por lá, o que está para acontecer precisa ser cumprido.
9 – A que você atribui o sucesso de músicas como “Envolvimento”, da MC Loma?
Não existem mais hits específicos de Carnaval, os blocos e trios tocam uma música factual, os sucessos do momento. MC Loma é um fenômeno da internet. O YouTube é quem dá as cartas hoje em termos de parada de sucessos.
10 – Qual o tempo de duração de sucesso de uma música como esta nos dias atuais e porquê esse período de auge parece cada vez mais acelerado?
Estamos vivendo o que Andy Warhol previu lá nos primórdios, a tal fama de 15 minutos. Não interessa mais ao mercado o gerenciamento de carreiras longas, e isso é um fato em qualquer setor artístico, a própria TV Globo contrata hoje em dia a maioria de seus atores por obra.
11 – Porquê canções desse tipo, que se tornam hits e têm um enorme apelo popular, ainda encontram resistência e sofrem preconceitos junto a uma camada da sociedade e da crítica?
A internet foi a causadora de um fenômeno que eu abomino, que é o saudosismo, a eterna glorificação de uma MPB do passado, uma reverência aos medalhões da música brasileira. E o que mais me impressiona é que são os mais jovens os primeiros a terem esse tipo de procedimento. Ou seja, avançamos na tecnologia, mas o pensamento corre em sentido contrário, cheio de preconceitos e classificações retrógradas. No entanto, o velho chavão sempre se repete. A voz do povo é a voz de Deus e contra isso críticos e elite nunca conseguiram vencer. Além disso, não há como haver a sofisticação de outrora com um ensino cada vez mais miserável. Os letristas de hoje são um retrato da educação que tiveram.
12 – Na sua opinião, quais os principais méritos de personagens desse novo cenário como a MC Loma e Jojo Toddyinho?
Serem de verdade. Não planejaram virar mito, não pagaram assessoria, nem fizeram média com o alto escalão. Esse é o grande mérito. Passam a receber cachês astronômicos e mídia correndo atrás a partir de uma música totalmente pessoal e intransferível, lançada sem a menor pretensão.
13 – Anitta é exemplo de uma cantora pop que superou a barreira do sucesso único, o hit solitário. O que você acha que contribuiu para ela conseguir alavancar a carreira musical?
Anitta já é um fenômeno ao contrário disso tudo, ela planeja com maestria cada um de seus passos, no que se assemelha muito à Madonna. Esperta e inteligente, pega o som que vem do underground e transforma em mainstream, tudo isso associado a uma imagem forte para cada videoclipe.
14 – Você enxerga exemplos no passado semelhantes a estes citados? De artistas que fizeram um enorme sucesso popular e depois sumiram do mapa do showbiz? O que mudou de lá pra cá?
Fenômenos populares sempre foram efêmeros porque são consumidos à exaustão e dificilmente chegam ao próximo passo. O que mudou foi que tínhamos artistas de carreira e pouca vendagem convivendo lado a lado com os imediatistas. As gravadoras financiavam ambos, as rádios se dividiam em categorias. Hoje em dia isso acabou, a música “cabeção” dançou de vez.
15 – Como enxerga essa produção, de músicas como ‘Envolvimento’, ‘Lepo Lepo’, ‘Créu’, e vários outros sucessos de Carnaval, dentro da história da música brasileira? Que papel elas desempenham?
Já existe uma nova música para dançar brasileira que passa pelo axé, pelo sertanejo e pelo funk, mas que agora vem acompanhada de beats eletrônicos, o que as descaracteriza dos primeiros hits desses gêneros. Um funk pode desaguar em sofrência e um axé virar pop latino. Isso se deve à repetição dos mesmos produtores para todos os artistas, padronizando os sucessos.
16 – É possível traçar algum paralelo entre as marchinhas que eram estouro nos anos 30, 40 e 50 com os funks e axés que tomaram conta do Carnaval a partir das décadas de 90, 2000 e 2010?
Carnaval era o motivo para os compositores fazerem marchinhas que o povo iria cantar na rua. Com a chegada do axé e sua indústria, onde seus artistas fazem música “sai do chão” o ano inteiro, os possíveis hits carnavalescos passaram a ser lançados durante todo o ano. E, assim, diluiu-se o formato de compor para o Carnaval.
Fotos: Site oficial/Divulgação.