De Tom Zé a Chico Buarque: músicas brasileiras sobre sonho

*por Raphael Vidigal Aroeira

“A Vida É Sonho” Calderón

Todos os poetas, artistas das mais variadas vertentes, ao longo de séculos, tiveram como matéria-prima de suas obras o sonho, ainda que refletissem a realidade, numa delicada combinação entre imaginário e linguagem. O tema aparece na música popular brasileira desde os primórdios, passeando por sua diversidade própria, seja de tonalidade, intérprete ou estilo. De Ary Barroso a João Bosco, passando por Chico Buarque, Gonzaguinha e Luiz Tatit, o sonho sempre nos cativou, instigou e mobilizou. Pois, afinal, ninguém vive sem sonhar.

“Sonhei Que Era Feliz” (samba, 1932) – Ary Barroso
Era só o gongo começar a soar que você saberia que ele estava em cena, com seus óculos circulares, seu bigodinho aparado e sua voz polêmica. Mas o gongo nunca soou para ele, um dos poucos que passaria impune a seu rigor seletivo. Ary Barroso do Brasil nasceu no interior de Minas Gerais, cresceu na capital do Rio de Janeiro e se apaixonou pelo cartão postal do Nordeste: A Bahia. Para ela compôs as mais passionais confissões, para o Rio de Janeiro as mais otimistas e se lhe perguntassem se ele nunca compôs para a terra onde nascera diria com humor ácido: “Afogue a saudade nos copos de Ubá”. Muitas lendas e folclores se perpetuaram sobre sua figura mítica, um dos símbolos de um Brasil musical que ele defendia com unhas, dentes e microfones. Fosse narrando os jogos do Flamengo ou acompanhando Carmen Miranda ao piano, Ary Barroso sempre esteve ao lado das bandeiras mais populares do seu país. E talvez seja ele a maior de todas elas. Em 1932, Carmen Miranda lançou “Sonhei Que Era Feliz”.

“Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda” (valsa, 1941) – Lamartine Babo e Francisco Matoso
Não é preciso tocar um instrumento para ser um grande músico. Que o diga o carioquíssimo Lamartine Babo, de quem, sobre sua relação com a festa mais popular do país, Braguinha disse: “Existe o Carnaval antes e depois de Lamartine”. Em marchinhas, valsas e sambas-canções, Lamartine puxa o desfile: “A tua pena não nega Lalá, tu és músico com louvor!”. Nascido no Rio de Janeiro, no dia 10 de janeiro de 1904, o músico morreu na mesma cidade, aos 59 anos, vítima de um infarto. Ao longo dos anos, suas músicas foram gravadas por Nara Leão, Maria Bethânia, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, dentre outros, inscrevendo seu nome em definitivo no panteão da nossa MPB. Um dos seus grandes sucessos é a linda valsa “Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda”, parceria com Francisco Matoso, lançada em 1941, pelo cantor Francisco Alves.

“Esta Noite Eu Tive Um Sonho” (samba de breque, 1941) – Wilson Batista e Moreira da Silva
O único samba que se tem notícia que traz uma citação na língua de Goethe, Brecht, Beethoven e Einstein. Assim é “Esta Noite Eu Tive Um Sonho”, samba de breque de 1941, composto por Wilson Batista e Moreira da Silva, que, na segunda estrofe, apela para o alemão: “Ich nag dich, seu Fritz”. A tentativa é de se fazer entender na terra das personalidades citadas, depois que a personagem do samba salta em Berlim. “O garçom respondeu: ‘não pode ser não!’/ Fiquei furioso e fui ‘hablar’ ao patrão”, canta Moreira da Silva, que lançou a música, mais tarde regravada por João Nogueira no disco “Wilson, Geraldo e Noel”, de 1981. A música traz uma série de tiradas impagáveis durante a letra irresistível.

“Sonhos de Criança” (choro, 1958) – Waldir Azevedo
Um estribilho é o suficiente para que as pessoas reconheçam “Brasileirinho”. A contadora de histórias Beatriz Myrrha, mineira e apresentadora do “Projeto Pizindim”, lembra que a composição “ocupa o primeiro lugar no ranking dos choros mais conhecidos do mundo”. Escrito em 1949, cuja primeira parte mantém-se, praticamente, em uma corda, é tido como o primeiro sucesso de Waldir Azevedo. Em 1958, ele compôs o lindo choro “Sonhos de Criança”. Pérola!

“Sonho de Amor e Paz” (samba-canção, 1961) – Vinicius de Moraes e Baden Powell
Sentado no meio de sua sala, com um copo de uísque na mão, cabelos longos, lisos e grisalhos, lá estava ele, rodeado por amigos que adoravam rir de suas piadas, cantar seus poemas, ouvir suas histórias de amor e tocar as músicas que eram feitas com suas letras. Amigos que sabiam que sem ele aquela comunhão não seria possível. Vinicius de Moraes chamava a todos por diminutivos, como prova de seu imenso carinho. O poetinha, como ficou conhecido por conta dessa carinhosa mania, era um reconhecido galanteador, um poeta indiscutível, um letrista que fazia do simples a obra de sua arte, um homem apaixonado que exaltou o amor a vida inteira. Exaltou as mulheres e as belezas brasileiras. Quem poderia dizer que aquele diplomata demitido pelo governo militar se tornaria um dos maiores poetas do país? Em 1961, ele compôs, com o parceiro Baden Powell, “Sonho de Amor e Paz”, samba-canção lançado por Geraldo Vandré, em um compacto do início da carreira do paraibano.

“Sonho Colorido de Um Pintor” (samba-enredo, 1971) – Talismã e Narciso Lobo
Tom Zé abre o violão e de lá retira repiques e passarinhos. Abre a saia e retira de si uma moça prendada, aquela da música “Menina, Amanhã de Manhã”, referência à ditadura. Ironias à parte, o mais ácido dos tropicalistas, como cansaram de defini-lo, não se enquadra. “Só posso ser útil se eu apenas oferecer aberturas”, explicou ele melhor que ninguém e do que qualquer um. A performance do artista guarda íntima ligação com o discurso. “Cada passo na arte é sobre o fio da navalha, entre o ridículo e o brilhante”, definiu certa vez. Baiano de Irará, Tom Zé é escorregadio como as utopias, o que nos ajuda a redescobrir o Brasil. Em 1972, ele gravou o samba-enredo “Sonho Colorido de Um Pintor”, que Talismã e Narciso Lobo compuseram para a escola de samba Camisa Verde e Branco, de São Paulo, um ano antes, com tremendo sucesso…!

“Sonhos” (balada, 1977) – Peninha
Nascido em São Paulo, ele começou a carreira artística com apenas 19 anos, em 1972, quando gravou o seu primeiro compacto pela RCA-Victor. O reconhecimento do público não demorou, e, em 1977, Peninha estourou em todo o Brasil, quando a música “Sonhos” entrou para a trilha sonora da novela “Sem Lenço, Sem Documento”, da Rede Globo, atingindo milhões de cópias vendidas e rendendo um disco de ouro para o intérprete. “Sonhos” fez tanto sucesso que ganhou uma regravação de Caetano Veloso. A música fala sobre um relacionamento amoroso, em que o intérprete é avisado de que seu amor está apaixonado por outra pessoa, a pura cara da desilusão. Mas Peninha, ao contrário, aproveita a experiência para aprender com a vida através da poesia…

“Sonho Meu” (samba, 1979) – Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho
A maneira singular, perfeccionista e suingada de tocar o violão levou a comparações com Baden Powell, de quem Rosinha de Valença seria o modelo feminino, mas é redutor considerar que ela fosse apenas um “Baden de saias”. Rosinha tinha acento único: ao executar, produzir e compor. Além de apurado tino musical. Foi graças a ela que Maria Bethânia conheceu “Sonho Meu”, em um sarau organizado para apresentar as canções de Dona Ivone Lara. Assim, Bethânia e Gal Costa gravaram esse bonito samba em dueto, no ano de 1979…

“O Sonho Não Acabou” (samba, 1980) – Luiz Carlos da Vila
Luiz Carlos da Vila nasceu no dia 21 de julho de 1949, no Rio de Janeiro. Morreu no dia 20 de outubro de 2008, aos 59 anos, vítima de um câncer de intestino. Conhecido por sua passagem pela ala de compositores da Vila Isabel, Luiz Carlos da Vila foi um dos compositores do samba-enredo “Kizomba, a Festa da Raça”, parceria com Rodolpho de Souza e Jonas Rodrigues que consagrou a escola em 1988. Frequentador do tradicional bloco carnavalesco Cacique de Ramos no final da década de 1970, Luiz Carlos da Vila é considerado um dos formatadores do samba carioca contemporâneo, de uma geração de compositores da qual fazem parte Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Sereno do Cacique e Sombrinha. Entre seus sucessos destacam-se “O Show Tem Que Continuar”, com Arlindo Cruz e Sombrinha, “Oitava Cor”, “Além da Razão” e “O Sonho Não Acabou”, lançado por Beth Carvalho, em 1980, com devido sucesso.

“Sonho de Um Sonho” (samba de carnaval, 1980) – Martinho da Vila, Rodolpho e Graúna
Martinho da Vila exibe trajetória singular na música brasileira por ter, no meio do samba – a mais tradicional manifestação popular brasileira – costurado estilo facilmente identificado à sua pessoa, tanto na maneira de viver como na de pronunciar-se. Alterando o andamento do ritmo, puxando-o “para trás”, em suas próprias palavras, concedeu ao gênero toda a malemolência e ginga características do povo, trazidas de Angola por seus ancestrais. Com esta mesma calma, Martinho jamais deixou de posicionar-se em relação à suas crenças musicais, religiosas e, consequentemente, políticas. É sem dúvida um dos artistas que mais contribuiu para a questão, seja para falar de dinheiro, racismo e os mais diversos preconceitos de gênero e sexualidade. Apreciar a música de Martinho da Vila, além de divertimento, também é aula de história. Com Rodolpho e Graúna, ele legou o samba “Sonho de Um Sonho”, de 1980…!

“Nunca Pare de Sonhar” (MPB, 1984) – Gonzaguinha
Por trás da expressão carrancuda, do semblante de poucos amigos e da barba que escondia-lhe a chance de um sorriso mais largo, havia um coração pronto a explodir do menino que desceu o São Carlos para colocar o dedo na ferida dos problemas sociais e afetivos de mulheres e homens. Filho do Rei do Baião, da dançarina Odaléia e da música brasileira que acolheu com tamanha propriedade, a cara de Gonzaguinha era a de um Brasil que não se entrega e não deixa de apontar as mazelas que atingem as suas pessoas. Com a camisa aberta e o peito à mostra ele escreveu através de suas músicas um retrato sensível, por vezes raivoso, outras vezes irônico, de sentimentos universais e em decadência. Era um grito de alerta, e ao mesmo tempo, de esperança, que comparece na música “Nunca Pare de Sonhar”, lançada em 1984, no LP “Grávido”. Um marco…

“Sonhei Que Viajava com Você” (MPB, 1992) – Itamar Assumpção
Para o crítico musical Hugo Sukman, “a música de Itamar Assumpção explode originalidade”. “Ele revela um mundo que, por incrível que pareça, dada a riqueza da música brasileira, não havia sido nos mostrado”, aponta. Segundo Sukman, a produção de Itamar se fia nas experiências do “negro urbano, de classe média”. “Ele faz isso dentro da tradição da canção brasileira”, diz. A denúncia ao racismo, que surge em “Cabelo Duro”, “Pretobras” e outras, é “feita com altivez”. “Itamar é a voz de uma população que ascendeu socialmente e chegou à universidade. Ele fala de igual pra igual. Nesse sentido, o comparo ao Gilberto Gil”, observa Sukman. Em 1992, Cássia Eller lançou a balada no estilo de vanguarda que sustenta o gênio de Itamar, regravada pelo próprio um ano depois, com sua banda As Orquídeas do Brasil: “Sonhei Que Viajava com Você”.

“Sonhos, Sonhos São” (MPB, 1998) – Chico Buarque
Se a história da música popular brasileira possui uma linhagem, nela não pode faltar o nome de Chico Buarque de Hollanda. Filho do historiador Sérgio Buarque – e irmão das também cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda – o garoto prodígio da canção nacional, como era de se esperar, começou cedo. Enfileirou sucessos desde o princípio da carreira, nos anos 1960, auge da bossa nova, passando por vários ritmos, gêneros e inclusive movimentos musicais, alinhavando parcerias com nomes como o poeta Vinicius de Moraes, o maestro Tom Jobim, o dramaturgo Ruy Guerra e o tropicalista Gilberto Gil, além de outros compositores de peso, tais como Milton Nascimento, Francis Hime e Edu Lobo. Mas Chico Buarque foi e ainda é por si só um emblema, símbolo da qualidade musical tanto em texto quanto em melodia. Não se considera um poeta, nem é preciso, as músicas o confirmam, como “Sonhos Sonhos São”, do ano de 1998.

“Sonhei” (canção, 2000) – Luiz Tatit
Fundador do histórico grupo Rumo, um dos ícones na década de 1980 da chamada Vanguarda Paulista, o múltiplo artista Luiz Tatit – músico, linguista e professor universitário –, realiza, com sua obra, um encontro entre a criação e a análise. Tatit afirma que essa obra é marcada por “certa dificuldade com a vida”. “Talvez eu carregue certo excesso de ironia que não me permite fazer letras sem conflitos internos, nem que sejam apenas aludidos, mas é claro que há exceções”, salienta o artista. Esta obra única e particular da música popular brasileira aponta rumos e destinos para o Brasil, apesar de suas imensas contradições. Ou, talvez, por causa delas mesmas. Eis o país dos contrastes. A belíssima canção “Sonhei”, de 2000, é um dos exemplos desse talento de Tatit…

“Um Sonho” (MPB, 2014) – Jorge Du Peixe, Dengue, Pupillo e Lúcio Maia
O movimento manguebeat deve muito a uma dupla nascida no seio do Tropicalismo. Na década de 70, Jorge Mautner e Nelson Jacobina compuseram juntos “Maracatu Atômico”, com imagens que angariavam para si uma liberdade completa e desbravadora em tempos de ditadura militar. A música foi lançada pelo próprio Mautner em 1974, e regravada por Gilberto Gil no mesmo ano. Mas foi a versão da Nação Zumbi, à época capitaneada por Chico Science, que a levou ao sucesso definitivo, quando, em 1996, ela reapareceu no álbum “Afrociberdelia”, que a apresentou a toda uma nova geração. Os versos poéticos de Mautner combinados à melodia de Jacobina e ao som da Nação foram vitais. Em 2014, após a morte de Science e já com Jorge Du Peixe nos vocais, o grupo lançou a balada onírica e reflexiva “Um Sonho”.

“Arco-Íris” (MPB, 2021) – Ed Nasque e Raphael Vidigal Aroeira
A delicadeza permeia todo o repertório de “Interior”, álbum de estreia de Ed Nasque, mineiro de Belo Horizonte que se mudou para Ouro Preto para cursar Música e realizar um sonho. A atmosfera de sonho, embora com pés fincados na realidade, aqui se concentra na transição entre mar e montanha, imagens recorrentes nas letras do trabalho. Agora chega a parte que me cabe. Antes da pandemia, Ed me convidou para escrever a letra de uma melodia que ele compôs. Mas o letrista não é dono das palavras, ele só as escava de dentro das notas. Portanto, tudo que digo em “Arco-Íris” já estava lá, escondido nesse interior sonoro que Ed revela a todos e a todas nós. A esperança está de volta.

“Samba Sonhado” (MPB, 2024) – João Bosco e Francisco Bosco
Mineiro de Ponte Nova, João Bosco tornou-se conhecido em todo o Brasil justamente porque, ao lado do principal parceiro Aldir Blanc, cantou as mazelas e glórias do país. Em 1973, ele lançou o seu primeiro disco, que tinha, como destaque, “Bala com Bala”, gravada um ano antes por Elis Regina, a mais exuberante intérprete de seu repertório. Elis se impressionou com o garoto de Ponte Nova quando, um ano antes, ele dividiu um disco de bolso, que saía no jornal O Pasquim, com ninguém menos do que Tom Jobim. A música de sua autoria era “Agnus Sei”, que condensava misticismo e cultura árabe em um samba brasileiro com forte influência da matriz africana. A mistura inconfundível de João Bosco, com seu violão único e seus vocalizes. Em seu disco mais recente, o anfitrião compôs com o filho, Francisco Bosco, um “Samba Sonhado”.

*Bônus
“Porto-poema” (samba, 2023) – Raphael Vidigal Aroeira e Marcos Frederico
O inesperado acendeu a canção “Porto-poema”, que nasceu com outro nome, e andamento diferente. O mundo estava sob uma pandemia quando o jornalista e poeta Raphael Vidigal recebeu do músico e habilidoso instrumentista Marcos Frederico uma melodia para colocar letra. O verso que a intitulou foi um dos últimos a vir à tona. A melodia também se modificou plenamente, agora impulsionada por um esperançar dos novos tempos, de uma nova estrela a brilhar no horizonte, com um sentimento de gratidão ao mundo e de perdão pelas dificuldades atravessadas neste caminho. “Hoje a vida me dá bem mais…”, diz o bonito verso que encerra o poema, em forma de canção.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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