“o tempo que de nós se perde
sem que lhe armemos alçapão,
nem mesmo agora que parece
passar ao alcance da mão,” João Cabral de Melo Neto
Cada vez mais tenho a impressão que o objetivo da dança contemporânea é se aproximar, além do indivíduo, da realidade. Nisso, dispensa o tom solene. Mas esta aproximação se dá no sentido de representá-la, e não imitá-la, o que nos levava, diante do balé clássico, rapidamente a associá-la à pintura figurativa. Agora seu espelho é o teatro. Pois não nos enganemos, incautos, o canto, ainda que falado, não deixa de ser canto, como a dança, mesmo que inspirada no andar, mantém sua natureza. Estamos no território da arte, sobretudo. O novo e inédito espetáculo da Cia. SESC de Dança, “Trilhante”, enfileira três apresentações de curta duração. Fica claro que “I. MEDI. ATOS”, coreografado por Joelma Barros, para além da realidade pretende abarcar o atual, e consegue, com louvas. Através, essencialmente, da luz e do trabalho do corpo de bailarinos que, aqui, mescla mulheres a homens, considera o feminismo, a tecnologia, questões de gênero, o uso de drogas, entre outras ilações possíveis, de maneira rica e vasta, sem reduzir o espectro de atuação. O figurino também contribui para que os movimentos ganhem em ressonância.
Por sua característica de teor mais próximo a uma leitura existencialista da realidade, “FRACTUS”, segundo espetáculo apresentado, auxilia-se numa verve clássica sem que isto gere uma contradição em seu discurso, neste caso amplamente revigorado pela trilha sonora criada por Gabriel Canedo, da qual a coreografia de Rafael Bittar se originou. Somente com bailarinos homens, também deve ao figurino parte de seus méritos. Porém é a dança, aqui, explicitada como tal, quem nos leva para espaços lúdicos e, por vezes, apaziguadores, sem despregar-nos da realidade, que invariavelmente retorna em sua concretude impossível de se dissimular. “Reminiscência”, cuja coreografia foi pensada por Alan Keller e que conta com o talento de Sérgio Pererê na trilha sonora, é quem traz a proposta mais distinta e, por ora, de difícil compreensão. Sem nenhuma intenção preponderante, dos três atos, é o que me parece mais distante de afirmar-se; se é que pretende mesmo evadir-se de sua volatilidade. Verdade que, neste caso, a iluminação e o cenário chapados não colaboram. Porém, tanto figurino, mais uma vez, quanto o desempenho da equipe feminina de bailarinas deveria puxá-lo mais para cima.
No todo das partes, espetáculo a se ver, e a trilhar. Especialmente por que, em seu conjunto, transmite-se de maneira poética, contundente e, acima de tudo, emotiva.
Ficha técnica
Coreografia: Joelma Barros, Rafael Bittar e Alan Keller.
Com Amanda Soares, Ana Silva, Bruno Miranda, Camila Gomes, Clarissa Moura, Cristhyan Pimentel, Diogo Gonçalves, Isaías Estevam, Josué Maciel, Kaio Fernando, Leonardo Bruno Rodrigues, Luiza Viana e Morvan Teixeira.
Iluminação: Joelma Barros, Renato Cordeiro e Gabriel Pederneiras/Figurino: Júnio Nery, Janaína Castro e Pablo Ramon/Cenário: Hernane Fernandes/Trilha Sonora: Cristian Tunes, Gabriel Canedo e Sérgio Pererê.
Raphael Vidigal
Fotos: Henrique Chendes.
2 Comentários
Oi Raphael, tudo bem?
Gostei bastante da crítica mas não entendi a parte em que você fala do último trabalho, com relação ao figurino e às bailarinas.
Você poderia esclarecer?
Obrigada
Ei, Maíra! Tudo bem e contigo?
Muito obrigado pelo comentário e o interesse em participar do blog, fico feliz!
Quanto à sua pergunta, no meu entender o desempenho das bailarinas e o figurino se sobressaem com relação a outros aspectos do terceiro ato, como coreografia, luz e cenário. Ou seja, o melhor do que pude ver no terceiro ato é justamente o desempenho das bailarinas e o figurino. Qualquer dúvida, sempre à disposição 🙂