“Na primeira noite, o lagarto lançou-se sobre sua esposa e devorou-a. Quando o sol despontou, no leito nupcial havia apenas um viúvo dormindo, rodeado de ossinhos.” Eduardo Galeano
Uma das maneiras que o ser humano descobriu para mudar o mundo é através do humor. Mas não necessariamente o riso frouxo é o apropriado para a utopia. Antes, aquele de dentes rangentes, nervoso, que raspam e expelem faísca pode tomar conta melhor desse destino. Para se proteger da morte, para sobreviver à violência e a condições inóspitas, para aturar o breu sem saída e nem resposta da vida, lá está o humor, com sua gargantilha quebrada e sua aparência inofensiva. “Maxilar Viril”, da Maldita Cia. de Investigação Teatral, parte do conto “História do lagarto que tinha o costume de jantar suas mulheres”, e do livro onde está inscrito, a antologia sobre as mulheres da terra natal do autor de “As Veias Abertas da América Latina”, para contar essa história que, por ser o teatro uma arte de ação, se faz muito mais através do tato do que dos diálogos. Isso não significa que a companhia siga claramente os dogmas de sua arte, pelo contrário, a proposta, ousada, é a de reverter e oferecer ângulos, catetos e hipotenusas distintos daqueles da moral e dos bons costumes. Afinal, mesmo o teatro tem suas manias e lugares seguros.
A peça não se restringe ao conto do uruguaio Eduardo Galeano, mas acrescenta a este conteúdo elementos que ao interagir contribuem para ampliar o sentido da fábula. Essa estética absurda encontra suas referências no cinema marginal de Rogério Sganzerla – com a inserção de comerciais satíricos através de uma locução caricaturada que captura o modus operandi da indústria cultural do consumo – e na música de vanguarda de Arrigo Barnabé, baseada na mistura de mundos aparentemente opostos pela aceitação em camadas sociais diferentes, como as histórias em quadrinhos e as composições eruditas atonais. Não por acaso esses pontos cingem tanto na trajetória das influências do grupo quanto na apresentação. A direção sensível e bem cuidada é capaz de apresentar um universo de violência, explorações e situações degradantes com uma formulação mordaz, crítica e circense, sob a lente que penetra no inconsciente do espectador com menos pedantismo, agressividade, e por isso é a mais letal: o humor. As canções escolhidas e executadas por Admar Fernandes, Sérgio Andrade e Christiano de Souza, a irrequieta iluminação de Felipe Cosse e Juliano Coelho e a aspereza do cenário proposto por Igor Godinho, Jônatas Campos e Camila Polatscheck embalsamam a atmosfera com o odor e o calor de uma América pulsante e que até hoje só se foi possível descrever com um único adjetivo: latinidade.
Para tentar costurar esse conjunto de valores típico da mistura de índios com portugueses, espanhóis, africanos e italianos, principalmente, os atores abusam com propriedade de gestos expansivos, e, já que a contradição permite, pois os latinos se bebem muito mais com sensações do que raciocínios, com a precisão de uma bomba-atômica. Essa percepção autodestrutiva só se realiza por conta da comovente entrega de Elba Rocha, Amaury Borges, Fernando Barcellos e Lenine Martins, todos não menos que estupendos. Amaury também é o responsável pela irreverente dramaturgia e direção. Nisto, faz-se outro louvor às soluções encontradas para constituir passagens da trama de Galeano, utilizando com maestria a precariedade dos objetos cênicos a seu dispor, a gama de possibilidades do palco e suas intersecções, e a força com que a cenografia lancinante salta aos olhos da plateia, que, a esta altura, tem alforria para enxergar um crocodilo na pele em pelo de um dançarino, uma noiva virgem na cabeça de uma boneca de plástico, e alguma estranha certeza de ter participado de um momento único do teatro.
Raphael Vidigal
Fotos: Guto Muniz