“escarneceu da velha cifra na tabela e falou de embuste, essa foi, à sua maneira, a mais estúpida mentira que a indiferença e a maldade inata puderam inventar, já que não era o artista da fome quem cometia a fraude – ele trabalhava honestamente – mas sim o mundo que o fraudava dos seus méritos.” Franz Kafka
“Discurso do Coração Infartado”, monólogo protagonizado pela atriz gaúcha – mas radicada há doze anos em Belo Horizonte – Silvana Stein, que também dirige o espetáculo ao lado de Ricardo Alves Júnior; atende a uma demanda essencial nos tempos modernos: apara os excessos e oferece o mínimo de distrações sonoras ou visuais ao espectador, economiza nas tintas (todo o cenário consente ao preto e branco, assim como o protagonista) e investe em falas rápidas e compactas, sempre musicais, advindas da boca ou de qualquer outra estrutura, por exemplo: barulho da geladeira, da vizinha, televisão ou cachorro.
No anseio de um frustrado e envelhecido ator cômico cuja aspiração maior é interpretar os respeitosos papéis dramáticos escritos pela pena do inglês William Shakespeare, em especial “Hamlet”, o jogo de inadequação começa pelo real e atravessa o que é obscuro, ou fantasioso, a atingir o absurdo para, como numa prosódia de Kafka, revelar o besta e ralo cotidiano. Ou seja, Silvana, uma jovem mulher viçosa saboreia os martírios de um corpo deteriorado pelo tempo à espera da morte. Mas esta é somente a casca, afinal esconde uma alma carregada de sonhos e a habitual conseqüência na espécie humana: desilusão.
A invasão existencialista é posta de forma sutil em cena, por um roteiro que prioriza a afetação através de gestos contidos, imóveis, sombreados e delineados como uma maquiagem colocada sobre os cílios que, no entanto, evoca o expressionismo alemão. Porque a vida de Horácio; velho ator cômico obcecado por Hamlet; busca sentido no impalpável, numa espécie de rebeldia infantil e prodigiosa mantém os pés sobre a terra ao ludibriar o grosso dos fatos com a leveza de uma fantasia indolente. Ao passo que seu corpo curvado realiza sustos, o coração inveterado caminha lento ao encontro da morte, tão presente quanto o futuro a se idealizar na viagem ao passado.
A utilização do áudio original em inglês e sem tradução do ator britânico Laurence Olivier na interpretação clássica do personagem shakespeariano não representa decréscimo ao caráter artístico da peça, pois ao que se propõe alcança mérito, contornado a incompreensão e o afastamento de uma vida que na solidão de si encontra abrigo, ao refutar a hostilidade do mundo ao entorno. Quanto mais o personagem se afunda nas próprias vestes, nos tiques – enfiando as mãos nos bolsos e abandonado o cachorro – ele desaparece ante o reflexo de uma luz difusa, e assim consuma-se o itinerário daquele com uma única sede: alcançar o inatingível imaginário de cada um.
Raphael Vidigal
3 Comentários
teve uma peça no fds muito doida, mas so decidir ir de ultima hora. =[ devia ter te chamado! da proxima n exitarei e te ligarei pra chamar mesmo em cima da hora..hauhauaua…
Muito doido! Lembrei do filme “A cidade de bougainville”.
Oi Raphael! lindo texto, preciso e profundo! gostei demais! Ajuda muito quando alguém escreve, é esclarecedor! muito obrigada! logo estaremos denovo em cartaz! grande abraço, silvana stein