Crítica: musical “Madame Satã” aponta o dedo pra plateia

“O mulato é de fato, e sabe fazer frente
A qualquer valente
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita
Sei que ele anda agora aborrecido
Por que vive perseguido” Noel Rosa

Madame-Sata

Toda arte é política, diz a máxima. Mas poucas vezes tão vigorosa quanto em “Madame Satã”. Apresentado pelo “Grupo dos Dez”, o musical com direção de João das Neves e codireção de Rodrigo Jerônimo – que também atua no espetáculo e assina a dramaturgia com Marcos Fábio de Faria – usa a história de João Francisco dos Santos, nome de batismo do protagonista, como ponto de partida para abordar uma série de outras questões. A proximidade com a plateia, quando a ação começa ainda na rua, e a destruição do muro que separa a fantasia da verdade, desmontam a possibilidade de qualquer distanciamento, pois o grupo anuncia de cara estar falando do nosso cotidiano, nosso dia a dia, nossa política mais casual e rasteira, nosso quintal, e aponta o dedo. Tudo é política, toda arte é política, mas esse é o teatro da nossa realidade mais próxima, nossa formação social.

O método escolhido para desenvolver a narrativa é o tempo, estratégia que permite refletir como o passado ainda influencia no nosso presente e também sobre preconceitos que, aparentemente, estariam superados. A peça não se equivoca em provar o contrário. Essa conotação temporal ganha forma na linguagem, que varia, como os intérpretes das personagens, entre o chulo, o incisivo, o poético e o rebuscado. Além de fugir do didatismo cronológico e conferir maior poder de intensidade às cenas, tal mecanismo amplia o poder de síntese dos gestos, capazes de desenvolver aquele arrepio na espinha sobre o qual se irá pensar antes de dormir. O cenário e o figurino de Cícero Miranda e Débora Alves, outras duas fontes de deslumbre, acompanham essas mudanças, assim como os objetos cênicos explorados, em sua simplicidade, com a mesma magia que o especialista manipula o cubo mágico e oferece soluções diversas e inesperadas. Vale dar créditos para a maquiagem e os cabelos cuidadosamente arrumados por Xisto Lopes.

Madame Satã – Oficinão 2014 – Teaser #1 from Galpão Cine Horto on Vimeo.

A iluminação atua de maneira direta sobre o destino e as posições de atrizes e atores, tal como a música. Numa das sacadas mais interessantes e inusitadas cria-se o efeito de fotografias e abre-se o leque de gêneros para o humor. Tudo através da luz. Outro jogo que aparece é o da capoeira, atividade fundamental na formação do caráter de “Madame Satã”, onde sobressaem as características primordiais do sujeito: a dança, entendida como arte; a luta, como retaliação à violência; e o jogo, como sobrevivência. A opção por esta inserção é novamente original, pois ao contrário de outras adaptações, em que a capoeira é posta com grande destaque, o musical a lança sutilmente, em meio a acontecimentos que julga mais necessários para o momento. Sobretudo porque busca-se um “Madame Satã” mais próximo do homem que do mito. O importante trabalho de preparação corporal é feito por Benjamim Abras. A extração de sons e imagens por balões, sapateados e as máscaras da infância de João, nessa que é a hora mais lúdica da peça, são outro ponto de inventividade, e se instala um clima circense.

Mas ela também aparece quando atrizes infiltradas na plateia manipulam a reação desta, migrando inteligentemente dos aplausos à retaliação reacionária, marcada por constrangimentos que são feridos com fervor por uma agulha muito fina e quase invisível: a ironia. Essa habilidade em costurar sentimentos e sensações conflitantes é um mérito indiscutível da companhia. Ao abordar o uso de drogas incorre-se na caricatura, com o uso de expressões hit na internet (“Foi o cão que botou pra nós beber”), talvez um aviso de que esta geração tenda à superficialidade. A temática da prostituição resvala no perigo de mostrar as que desempenham a atividade pelo viés do arrependimento e da necessidade, o que se entende pela época e a perspectiva da exploração. Mas é preciso ter em mente que muitas dessas mulheres e homens preferem hoje em dia o discurso da escolha e do prazer na profissão, quando há independência, é claro. Mas no Brasil, pela nebulosidade com que a questão é tratada, não se tem essa segurança.

Alysson Salvador, que também faz os arranjos, Bia Nogueira, atriz e diretora musical, Daniel Guedes, Denilson Tourinho, Evandro Nunes, Flor Bevacqua, Gabriel Coupe, Julia Dias, Kátia Aracelle, Laís Lacôrte, Nath Rodrigues, Rodrigo Ferrari, Rodrigo Jerônimo e Thiago Amador tomam conta de suas personagens da mesma maneira que dos instrumentos musicais e do fôlego da plateia, todos com a inevitabilidade de alcançar as veias e os veios mais profundos daquele universo que é nosso, é de Madame Satã, e de todo mundo. O samba tocado por violinos, cuícas, vozes roucas e líricas, corpos que maltratam o chão com pisadas de liberdade, investe mais harmonia à comunhão. O discurso religioso transparece como deboche e em sua essência. Esse movimento pendular, capaz de cristalizar a atualidade de sua temática principal, o preconceito contra minorias: negros, homossexuais, prostitutas, pobres, travestis, mulheres; denota a frase atribuída ao caricaturista Wolinski – assassinado por terroristas – de que não é possível uma arte de direita, somente de esquerda. Por essas e outras epifanias vale a pena estar vivo para assistir “Madame Satã”.

Madame-Sata-musical

Raphael Vidigal

Fotos: Guto Muniz

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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