Cecília Beraba e Jorge Mautner se unem no primeiro disco da cantora

*por Raphael Vidigal

“Deves trazer o caos dentro de ti para fazer nascer uma estrela bailarina.” Nietzsche

Jorge Mautner devora, com apetite antropofágico, um pote inteiro de sorvete de flocos. Cecília Beraba presenciou essa cena algumas vezes. E, diante do senhor de 80 anos, enxergou ali uma criança faminta pelas delícias do mundo. Ou, na linguagem das religiões afro-brasileiras, viu baixar um Erê, palavra originária do dialeto africano iorubá, que significa “brincar”. Daí surgiu “Eremita Erê”, única das doze faixas de “Eterno Meio-Dia: Parcerias com Jorge Mautner”, disco de estreia de Cecília, que não traz a assinatura direta do homenageado, embora totalmente influenciada por sua figura. “Enquanto todo mundo está ficando velhinho, querendo parar, o Jorge segue o caminho contrário, fazendo o possível para permanecer fresco e de vanguarda como ele sempre foi”, afirma Cecília. A letra reflete esse pensamento: “Agora que estão todos quietos/ Cê quer fuzuê…”.

Em janeiro deste ano, Mautner entrou para o time dos octogenários. Filho de imigrantes alemães, com pai austríaco e mãe iugoslava, que chegaram ao Brasil fugindo do holocausto, Mautner teve um padrasto alemão que se tornou violinista titular da Orquestra de São Paulo. Cresceu em uma casa bastante intelectual, e, desde cedo, se habituou a passar dias e tardes preenchendo o tempo com os prazeres da leitura e da escrita. “Ele tinha uma cabeça muito amadurecida para a idade dele e, quando jovenzinho, com 14, 17 anos, era super eremita. Com a oportunidade de conviver com o Jorge no dia a dia, pude encontrá-lo cada vez mais entrando em processos que a gente conecta às maluquices de criança e que eu chamo de Erê”, aponta Cecília. A relação dela com Mautner começou pela obra: “Não dá pra lembrar a primeira vez que ouvia Bethânia, Gil, Caetano”.

Encontro. Com Mautner, ela também não tem uma recordação primeva. O compositor de “Maracatu Atômico”, “Lágrimas Negras”, “Estrela da Noite”, “Samba Jambo”, “Quero Ser Locomotiva”, “O Vampiro”, “Todo Errado” e outras preciosidades da música popular brasileira, pairava em seu imaginário sem que ela “tivesse consciência do trabalho dele verdadeiramente, como ainda existem vários que eu um dia descobrirei”. “Jorge ficava revirando nesse universo quando, num belo dia, eu estava numa situação muito difícil, afundada em uma crise grande e assisti ao documentário ‘O Filho do Holocausto’”. Dirigido por Pedro Bial, o longa de 2012 se detém sobre a trajetória artística e pessoal de Mautner. À época, Cecília vivia um relacionamento abusivo com o ex-namorado, e estava ao lado dele quando entraram as primeiras cenas do filme e ecoou “um acorde super desconcertante de Nelson Jacobina”. “Ali eu já mergulhei total”, diz.

Cecília saiu da experiência cinematográfica “precisando engolir tudo o que Jorge tinha escrito”. Ela sentou-se com a “Mitologia do Kaos”, um box lançado pela editora Azougue, e começou a deglutir toda a bibliografia do autor que, aos 15 anos, publicou “Deus da Chuva e da Morte”, e, na década de 1960, fundou o partido e o movimento Kaos, com influências de matriz filosófica, política e religiosa, cujo primeiro fundamento o definia como “ato sexual: deixaria de ser gostoso por ser sempre aparentemente a mesma coisa?”, e propunha uma “rebelião pura e permanente”. “Foi como se eu tivesse encontrado a minha língua mátria”, diz Cecília. A partir desse momento, Mautner virou um ídolo. “Não no sentido de fé cega, mas do ponto de vista prático”. Cecília aprendeu o repertório do compositor para shows que realizou, leu todas as publicações e passou a idealizar projetos. Quando já não cabia mais em si, tomou coragem e o convidou.

Identificação. Acessível, Mautner topou participar de uma música que ela iria gravar, e a convocou para ir até sua casa, no Rio de Janeiro. “Entendi que gosto é identificação. Quando são ídolos que você coloca num pedestal, o que há é projeção de si em símbolos que o artista acaba representando, mas, quando existe um gostar tão atento, a aproximação é com aquilo que se assemelha a você”, observa. A conversa da dupla revelou um entendimento imediato, e Mautner vaticinou: “As estrelas te mandaram… Daqui até o fim da minha vida a gente se encontra pelo menos uma vez por semana. E depois, quando eu morrer, volto pra te assombrar…”. “Mais?”, riu Cecília. Lá se foram cinco anos, em que o veterano teve que lidar com situações delicadas de saúde, que envolveram um ataque cardíaco e o diagnóstico precoce de Alzheimer. A amizade, “que era tão filosófica, de trabalho, produção, foi ficando mais doce…”, recheada de questões comezinhas que não deixam de conter as suas próprias agonias e aleluias.

Cecília pediu demissão de cinco escolas em que dava aulas, parou de tocar em bares e de se apresentar em festas infantis aos fins de semana. O período de levantar grana para gravar seu primeiro álbum chegava ao fim para entrar em outro estágio. Ela manteve apenas as aulas particulares, para se dedicar a essa nova fase do processo com a intensidade que ela demandava. Agregou o conhecimento profundo e denso da obra de Mautner, recebendo um turbilhão de informações do mundo que existe dentro dele, a uma convivência íntima, baseada em carinho, admiração e afeto. Cecília colocou melodia em mais de 30 textos do anfitrião. O repertório final foi selecionado com sugestões de Mautner e temas que a cantora encarou como urgentes para o momento. Duas delas se destacam sob essa perspectiva: “Esquadrão da Morte” e “Verdadeira Realeza, Corona”. A primeira nasceu de uma crônica escrita por Mautner na década de 1970, repercutindo a notícia assustadora de uma execução pela milícia carioca.

Política. “Morto, triturado/ Que nem porco/ Que nem gado/ No padrão e no esporte/ Às seis para as seis/ No facão e no corte/ Das leis sem leis/ Do esquadrão da morte”, descrevem os versos interpretados por Cecília, que bramem contra a realidade de um país que elegeu a presidente da República o candidato que durante três décadas de atividade parlamentar defendeu e incentivou as milícias, e cuja ficha corrida contém uma condenação em três instâncias por apologia ao estupro. “Jorge foi um agente político fundamental para momentos decisivos da nossa história. Ele guarda visões e até profecias, porque é ótimo nisso, que são mais atuais do que na época. Isso é valioso”, elogia Cecília. Em 1962, ele se filiou ao Partido Comunista Brasileiro. Com o golpe militar de 1964, acabou preso. Solto, se exilou em Londres e nos Estados Unidos, onde trabalhou na Unesco. De volta ao país, contribuiu em “O Pasquim”.

Em “Esquadrão da Morte”, Cecília recita um poema sobre as diferenças entre bonobos e chimpanzés, duas espécies distintas de macacos: a primeira guiada pelo prazer sexual e, a segunda, pela violência. A imagem de símios também surge na capa do álbum, uma fotografia de Custódio Coimbra que mostra crianças no Carnaval, por trás de uma janela de ônibus. “Ao mesmo tempo tem uma força e uma estranheza”, sugere a intérprete. Sobre a foto, ela colocou o símbolo do Kaos. “É meio ave, tridente, Exu, indígena, traz tanta coisa. É uma viagem olhar para aquilo”. “Verdadeira Realeza, Corona” capta a tragédia da pandemia que já vitimou 300 mil brasileiros em pouco mais de um ano. “Tudo ao nosso redor desmorona/ Ao som dos nossos últimos suspiros/ Como sinistra homenagem/ Ao coronavírus”, poetiza Mautner. “Jorge tem uma tensão política que eu não vejo por aí, acho que é mais fundo que a casca política”, diz Cecília.

Parceria. Ainda assim, ela avalia que as semelhanças se sobrepõem. “Ele tem um tempo poético, um ritmo e uma dinâmica que são muito espontâneas dentro de mim. Então, musicar letras dele soa natural. Embora eu não faça, musicalmente, o que ele faria”, pondera. Ela considera a experiência uma “grande escola”. A primeira letra que se atreveu a musicar foi “Berçário das Estrelas”, que não entrou no disco. “Não tinha nem rima, era ele narrando como uma estrela nasce, tipo uma bula de remédio”. “Ventos do Norte” segue essa estrutura complexa, narrativa e, à primeira vista, pouco musical. É a preferida de Cecília no álbum. Ironicamente, ninguém comentou com ela sobre a música. “Passou batida no disco”, lamenta. Nada que Mautner não tenha vivenciado ao longo de sua trajetória incomum e pessoalíssima, o que o levou a ser taxado de “maldito” dentro da MPB, ao lado dos não menos transgressores Jards Macalé, Walter Franco, Cida Moreira, Tom Zé, Arrigo Barnabé, Luiz Melodia, entre outros.

Calejado pela estrada, Mautner teve como fiel escudeiro o violonista Nelson Jacobina, morto em 2012, uma espécie de Sancho Pança para o Dom Quixote brasileiro em seu embate com os moinhos de vento. “A poesia musical do Jacobina é raríssima”, afiança Cecília, que lança mão de personagens que Mautner encarnou em canções, como o Imperator e o Vigarista Jorge, para corroborar a tese. “Jorge tem uma consciência musical que vem do padrasto e também de uma iluminação interna. As linhas melódicas ‘mautnerianas’ não existiam na música brasileira, e ele faz isso através de recursos estilísticos com a voz, o violino e o bandolim, desconstruindo aqueles mundos para trazer uma personalidade muito específica”. Na opinião da cantora, Jacobina “soube colocar a própria personalidade musical ao lado de outra tão forte”. “Ele sacou as linhas melódicas que o Jorge fazia e aproveitou tudo. Principalmente na juventude, o Jorge vinha com essa virilidade, esse tônus, e o Jacobina adiciona um suingue e uma suavidade que faz com que a canção passe a ter molas e delicadezas…”.

Tempo. Foram 40 anos de parceria. O tributo ao amigo que partiu aparece na faixa “Jacobina”: “Choram todas as flores/ Uivam todos os violões/ Ao som do véu da coisa divina/ O som de Nelson Jacobina”. A frase que batiza o álbum foi pinçada de “Sagrada É A Família”, uma animada marchinha carnavalesca. “O Jorge chama de ‘sol de eterno meio-dia’ o que seria quase um Orum, que na mitologia iorubá é o céu onde os mortos estariam juntos batucando”, explica ela. “Além de ser bonito sonoramente, acho que traz uma conexão com o que estamos vivendo. São 3 mil mortes por dia. Como a gente pode existir com tanto luto sem perder uma condição mínima de fé no futuro? Precisamos criar forças para tocar em frente, sem o negacionismo troglodita, desalmado e louco que ignora tudo, mas pelos laços de afeto, para não se paralisar no caminho”, reflete.

Ela entende o trabalho como uma ode a um artista do passado que sempre manteve os olhos voltados para o futuro. “Tem essa ideia do deus Sol da antiguidade, o Deus do submundo, mas também no sentido de renascimento e vitalidade que o Sol carrega”. A diferença de idade entre Cecília e Mautner é de 50 anos, o que não impede que suas concepções se toquem. Para ela, é necessário “valorizar presente, passado e futuro igualmente, buscando novas perspectivas, e ter tempo de absorver as coisas lentamente, se permitir ler livros longos, pensar antes de discutir”. “Temos a impressão de que não temos mais tempo para nada, e talvez a gente não tenha mesmo, mas, quando a gente engole tanta coisa sem refletir, perdemos o senso crítico e a capacidade de procurar novas ferramentas para o problema que está à frente”, sustenta. “Nosso momento político tem traços parecidos com os de diversas culturas recentes da humanidade. Cabe a nós buscar essas novas saídas para se reconstruir”, opina.

Independência. Cecília pagou o disco do próprio bolso. E teve que enfrentar um cenário de independência onde a criatividade precisa acompanhar as restrições orçamentárias. “É tudo muito falido. As pessoas repetem que a indústria musical acabou graças à pirataria ou por conta da modernidade cibernética. É mentira! Acabou pela falta de ética da indústria, onde você tem alguns profissionais ganhando milhões para fazer canção pop, cheia de regras, que não tem nem uma raridade especial, enquanto milhares de músicos não conseguem pagar aluguel”, denuncia. “Não consigo entender como essa conta fecha. Está todo mundo escutando música, o capitalismo gira vendendo seus produtos a toque de caixa e os músicos não conseguem pagar aluguel. Isso não faz o menor sentido. Quem vai gravar disco no Brasil? Só os herdeiros e os loucos?”, reforça.

Para concretizar “Eterno Meio-Dia: Parcerias com Jorge Mautner”, Cecília assumiu a produção e cuidou da burocracia junto a músicos, técnicos e estúdios, além, claro, de compor as canções. Segundo ela, o coração e a ética a guiaram em cada escolha, troca, acordo e pagamentos feitos. “Meu ofício é a grande motivação que tenho pra fazer tudo isso. Amo o que faço e, desde muito pequena, meu sonho de vida é ter uma carreira autossuficiente. Não é ter aplauso e dinheiro, é poder compor e fazer shows sem ter que abrir mão de uma linha de baixo porque não dá pra pagar”, exemplifica. “Tem que haver uma desconstrução individual a curto alcance pra cada um de nós entender os novos tempos e buscar novas maneiras”, completa. Cecília se coloca à disposição para ajudar a fomentar um novo mercado musical, “onde técnicos, músicos, estúdios e produtores possam existir com dignidade, com foco no som e não na imagem”.

E, por fim, oferece de bandeja uma frase de Jorge Mautner. “Ou melhor, como Jorge Mautner diz que Buda diz: ‘Embora seja inútil, não negligenciar esforços’”.

Fotos: Ana Lúcia Araújo/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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