*por Raphael Vidigal
“Moro na possibilidade,/ Casa mais bela que a prosa,
Com muito mais janelas/ E bem melhor, pelas portas
De aposentos inacessíveis,/ Como são, para o olhar, os cedros,
E tendo por forro perene/ Os telhados do céu.
Visitantes, só os melhores;/ Por ocupação, só isto:
Abrir amplamente minhas mãos estreitas/ Para agarrar o paraíso.” Emily Dickinson
Com o violão a tiracolo, o pai de Mariana Bruekers levava a música ao vivo para os acampamentos e os passeios em família – havia também, ali, um conjunto de canções e compositores denominado por eles, até hoje, de “músicas de viagem”. “Para quem começou tão cedo a viajar é difícil escolher uma que tenha marcado mais”, admite Mariana, que, logo na sequência, se lembra da travessia percorrida entre Lapinha e Tabuleiro, na região da Serra do Cipó, em Minas Gerais, feita em 2016. “Foi uma das primeiras que me fizeram refletir sobre o quão maravilhoso é estar em contato profundo e intenso com a natureza”, conta.
Dessas paixões e divagações nasceram o ímpeto e o desejo que conduziram a compositora, flautista e musicista com mestrado em Pedagogia Musical pelo Royal Conservatoire da Holanda a se atrever numa nova aventura, unindo duas pontas que se tornaram uma só em “Mundo Música”, projeto que ela e o companheiro Alvarito Terroba estrearam durante a pandemia de Covid-19. “A ideia surgiu no início do ano passado, quando estávamos planejando uma viagem de carro pela América do Sul. Esta é uma viagem que planejamos há algum tempo e iríamos sair em dezembro de 2021, se não fosse pela pandemia. Então resolvemos adiar por um ano e o plano é sair em dezembro”, detalha.
Sonho. O roteiro compreende todos os países da América do Sul, onde eles pretendem “tocar e compartilhar músicas e vivências”. Foi pensando na importância de documentar essa viagem, “não apenas para nossa família, mas também outras pessoas que possam curtir esse processo”, que eles decidiram criar o canal no YouTube. Na impossibilidade imediata de um sonho, Mariana e Alvarito colocaram outro sonho, literalmente, na estrada – e também no ar. “Para aprender a lidar com as ferramentas de edição e divulgação, resolvi postar passeios menores que já costumávamos fazer, e assim, aos poucos, crescer com o canal e com a minha experiência, para quando sairmos para a grande viagem, eu já estar familiarizada com tudo, e talvez até com alguns seguidores para nos acompanhar!”, estimula.
Feito isso, ela começou a pesquisar canais de viagem para se inteirar do metiê e, ao mesmo tempo, “agregar algo novo e diferente, que tivesse a minha cara”. “Nesta hora, obviamente, a música ressaltou como ponto importante, e daí surgiu a ideia de utilizar como trilha dos vídeos a obra de compositores e grupos autorais e independentes, ajudando assim a promover, além dos locais visitados, a arte dessa galera”. Entre os vídeos já postados, há destinos como Cachoeira Santa e Naná, no Morro do Pilar; a Cachoeira da Caverna, na Serra do Cipó; Arraial do Cabo, São Thomé das Letras, Chapada Diamantina, Piúma, dentre outros, contemplando Estados como Minas, Rio, Bahia e Espírito Santo.
Trilha. “Os locais, de início, eram lugares que eu já frequentava, e aos poucos comecei a escolher outros que eu tinha vontade de ir, e que ainda não havia visitado. Como eu viajo muito, especialmente para a região da Serra do Cipó, muitos amigos viviam me perguntando dicas de cachoeiras, passeios, hospedagem… agora com o canal eu compartilho isso de uma forma mais prática e precisa!”, explica Mariana. A música é a outra protagonista, e transita de artistas consagrados a novidades recentíssimas da MPB. Por exemplo, Coletivo A.N.A., Chiquinha Gonzaga, Nando Reis, Naroca e Geraldo Azevedo.
Essa trilha ganha a interpretação de músicos que temos a oportunidade de conhecer mais de perto. “Com relação à música, como eu falei, optei por escolher sempre músicos ou grupos independentes e autorais. Sou uma amante da música brasileira, e muito fã de meus amigos músicos daqui de BH! Em princípio, comecei convidando alguns que eu já conhecia para participarem do projeto, o que ainda faço até hoje, mas outros já vieram até mim pedindo para participar, o que me fez conhecer ainda mais músicos da cena autoral independente não só de BH, mas de outras cidades e Estados”, comemora.
Conexão. Mas nada está ali gratuitamente. “Procuro achar uma conexão das músicas com as imagens, e escolho a dedo cada faixa e o local exato de colocá-las no vídeo para que tenham certo protagonismo junto à imagem e não seja somente um fundo musical. No final de cada episódio, sempre convido as pessoas a conhecerem mais do trabalho do artista contemplado, citando os contatos no texto descritivo”, afiança Mariana.
Música e viagem nasceram para ela – e dentro dela – muito cedo. “A música através do meu pai, músico amador, que desde que eu era muito pequena me levava a shows e concertos, e tocávamos e cantávamos em casa. E a paixão por viagens também através dos meus pais, que viajavam muito comigo e meus irmãos desde que éramos muito novos, e eu sempre adorava, especialmente quando íamos acampar”, relata.
Natureza. Bichos, mato e natureza sempre a fascinaram e, na medida em que Mariana foi crescendo e ganhando mais independência nas viagens, elas permaneceram como prioridade em sua vida, enquanto a música se assentava como sustento e profissão, sem renegar o amor pelo ofício. “Essas duas vertentes são a minha vida hoje”, destaca. Ela considera que “a natureza é musical”, enquanto a música “faz parte da natureza humana”.
“Quando estou no mato, a forma como ouço os sons da natureza, cigarras, grilos, pássaros, cachoeiras, se organiza quase que como música para mim. Não é à toa que a maioria das minhas composições são inspiradas por ela. Mas o ponto que mais aproxima a música da natureza, para mim, é a paixão que tenho por essas duas. E a forma como elas me tocam. E a beleza imensurável que vejo nas duas. E a emoção inefável que sinto quando estou em contato com ambas”, poetiza.
Desafios. “Tinha uma pedra no meio do caminho”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade em versos já arraigados ao inconsciente coletivo. Assim, os desafios também se apresentaram a Mariana, sendo, o maior deles, conseguir arrebanhar seguidores nas redes. “Para ter uma maior visibilidade do canal e, quem sabe um dia, monetizar o meu trabalho, preciso que mais gente o veja e acompanhe. E isso é bem difícil! Todas as pessoas que cruzam meu caminho nos passeios que faço amam o projeto, e cada vez mais gente nos segue, mas é muito difícil atingir a um grande público. É um processo que estou fazendo, e acredito que demanda certo tempo”, declara.
Por outro lado, as recompensas têm sido imensas. “Primeiro por saber que o principal objetivo do canal já está sendo atingido. Por ele, minha família acompanha de perto cada viagem, quando não estão presencialmente e fazendo parte dos vídeos, e o projeto virou uma desculpa para que eu conheça mais lugares novos e viaje ainda mais! Além disso, fico muito feliz quando recebo comentários de pessoas que foram a um local porque viram o meu vídeo, ou estão acompanhando um músico ou grupo porque o conheceram através do canal. Isso é muito gratificante”, agradece ela, que não tem tempo a perder, apenas a aproveitar, pois, como vaticinou outro cânone da literatura nacional, “é humilhante ouvir um homem dizer que não tem tempo quando ele está vivo”, disse Machado de Assis.
Passear. “Os próximos passos, além de seguir com estes passeios por Minas, estão ligados à primeira pergunta que você fez, e ao motivo inicial da criação do canal, que é o de nos preparar para a grande viagem. Divulgação, patrocínios, contatos e ideias vão surgir até o final do ano, e, se tudo der certo, em dezembro partiremos nesta grande aventura de oito meses pela América do Sul, e vamos documentar e compartilhar tudo através do Canal Mundo Música!”, promete Mariana. Afinal, “todos esses que aí estão/ atravancando meu caminho/ eles passarão…/ eu passarinho!”, saúda o poeta Mario Quintana.