Boca do Inferno: A poesia de Gregório de Matos na música popular brasileira

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Todos somos ruins, todos perversos,
Só os distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.” Gregório de Matos

Conhecido como “Boca do Inferno”, Gregório de Matos foi um poeta satírico do século XVII, que também praticou sonetos, trovas e outras formas literárias já consagradas naquele tempo. Com a passagem dos anos, sua obra foi revista e redescoberta, tanto em estudos acadêmicos quanto pela ação de compositores populares, que a colocaram no centro da MPB. Entre os casos mais emblemáticos está o de Caetano Veloso, que musicou Gregório para o aclamado disco “Transa”, lançado em 1972. O que está longe de ser uma exceção, como vamos comprovar com essa matéria dedicada ao poeta maldito, cuja produção segue reverberando, mantendo intacta a criatividade da escrita.

“Triste Bahia” (canção, 1972) – Gregório de Matos e Caetano Veloso
Caetano Veloso participou ativamente do processo de reconstrução da imagem do poeta Gregório de Matos, sendo saudado pelos concretistas, especialmente Haroldo de Campos, que dedicou textos críticos a respeito. O músico baiano se encontrava exilado em Londres, após ter sido preso e torturado pela ditadura militar, quando, em 1971, gravou o disco “Transa”, considerado por muitos especialistas o ponto alto de sua carreira fonográfica.

Com arranjos de Jards Macalé, Tutty Moreno, Áureo de Souza e Moacyr Albuquerque, o trabalho se distanciava sonoramente da carnavalizante estética tropicalista encampada por Rogério Duprat, mas mantinha processos caros ao movimento, como a colagem e as indefinições entre popular e erudito, arcaico e moderno, donde entra a “Triste Bahia” de Gregório, vista sob a ótica única de Caetano.

“A Um Passarinho” (canção, 1979) – Gregório de Matos e Marcus Vinícius
Publicitário, Marcus Pereira lançou, de forma despretensiosa, ainda na década de 1960, o seu famoso selo que jogaria luz sobre verdadeiros clássicos da música popular brasileira, como o primeiro disco de Cartola, a estreia de Cristina Buarque num álbum em homenagem a Paulo Vanzolini, e as coletâneas regionais, dentre outros. Em 1978, foi a vez do cantador Marcus Vinícius lançar o seu LP pelo selo.

Intitulado “Nordestino”, trazia, entre outras, a faixa “A Um Passarinho”. Com versos de Gregório de Matos, a cantiga narra a história trágica do eu lírico, condenado a ser perseguido por caçadores, a não ser que se cale. “Não cantes mais que a morte lisonjeas;/ Esconde a voz e esconderás a vida,/ Que em ti não se vê mais que a voz que canta”, diz o poema de Gregório. A composição é uma dessas relíquias da MPB que precisa ser redescoberta.

“Epílogo” (axé, 1989) – Gregório de Matos e Gerônimo Santana
Nascido na cidade de Salvador, o maior sucesso de Gerônimo Santana na música foi o ijexá “É D’Oxum”, parceria com Vevé Calasans que, regravada por Gal Costa, integrou a trilha sonora da minissérie “Tenda dos Milagres”, na Rede Globo. Percussionista do famoso Trio Elétrico Dodô e Osmar, tocou com Luiz Caldas e tornou-se uma das figuras mais identificadas com a cultura afro-baiana.

O fato de ter sido bailarino durante muito tempo explica o título de seu LP lançado em 1989, “Dançarino”, em que aparece a primeira versão para “Epílogo”, poema de Gregório de Matos musicado por Gerônimo. Ele regravaria esse axé em 2015, como parte do álbum “Pastores do Mar”. Antes, a cantora Maíra Lemos, surgida no programa “Domingão do Faustão”, também a registraria, em 1997. A música toma como cenário, justamente, a Bahia e seus dilemas.

“Não Quero Mais do Que Tenho” (rock, 1994) – Gregório de Matos, Rodrigo Leão e Alessandro Delicato
Pode-se detectar a amplitude da poesia de Gregório de Matos nas diferentes adaptações musicais que ela recebeu ao longo dos anos. Um dos exemplos mais notáveis é a transposição para um rock cru, gritado, quase punk, que a banda Professor Antena operou sobre os versos do poeta barroco, que assim surgiram em “Não Quero Mais do Que Tenho”, música lançada em 1994, com melodia de Rodrigo Leão e Alessandro Delicato.

Para incrementar o caldo da anarquia, a faixa ainda traz a participação do músico Daminhão Experiença, conhecido tanto pelo experimentalismo nonsense quanto pela loucura diagnosticada psicologicamente. O grupo, formado por um ex-VJ da MTV, foi um dos pioneiros em agregar um DJ em sua formação musical. Apesar disso, não teve vida longa, e logo se desfez, antes do fim da década de 1990…

“Mortal Loucura” (canção, 2005) – Gregório de Matos e José Miguel Wisnik
Primeira cantora a gravar Chico Buarque, também identificada com a bossa nova, tendo recebido um elogio público de João Gilberto, que afirmou que ela tinha a “voz colorida”, a paulista Maricenne Costa demonstrou seu pioneirismo em outro episódio quando, no ano de 1980, gravou a música intitulada “Fragilidade Humana”, com melodia de Paulo Weinberger.

Tratava-se do mesmo poema de Gregório de Matos que, décadas mais tarde, receberia novo batismo e melodia de José Miguel Wisnik. Feita para o espetáculo “onqotô”, do Grupo Corpo, a música foi apresentada como “Mortal Loucura”, na interpretação do cancionista e de Caetano Veloso, em 2005. Posteriormente, foi regravada por Maria Bethânia e entrou na trilha da novela “Velho Chico”. Mônica Salmaso, Maísa Moura, Izabel Padovani e Mariana Nunes a gravaram.

“A Cidade da Bahia” (canção, 2007) – Gregório de Matos, Jackson Costa, Paulo Dourado e Tadeu Mascarenhas
A capa do disco traz uma colagem com o rosto de quatro personagens negras, numa espécie de mosaico da diversidade cultural baiana. Batizado “Salvador Negro Amor”, esse trabalho coletivo, lançado em 2007, agrega participações especiais de músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Marisa Monte, Mateus Aleluia, Margareth Menezes – atual Ministra da Cultura no terceiro mandato do presidente Lula –, Arnaldo Antunes, Lazzo Matumbi, Virgínia Rodrigues e Jauperi.

Entre as faixas, destaca-se “A Cidade da Bahia”, um dos mais conhecidos poemas de Gregório de Matos, aqui musicado por Jackson Costa, Paulo Dourado e Tadeu Mascarenhas. Com forte presença das percussões de matriz afro, sublinhadas por uma guitarra de acento contemporâneo, a canção atualiza a reflexão sociopolítica proposta pelo texto poético…

“Besta Fera” (choro, 2019) – Gregório de Matos e Jards Macalé
A primeira vez que a poesia barroca de Gregório de Matos (1636-1696) apareceu em disco foi no ano de 1956, porém ainda sob a forma de declamação, e não de canto, com a edição do LP “Poesia de Sempre (Antologia)”, com versos de diferentes autores interpretados por Paulo Autran (1922-2007). Nessa joia da discografia nacional surge, na voz do ator, “Sátira aos Vícios”.

Décadas depois, o músico Jards Macalé trabalharia sobre o mesmo texto para criar, em ritmo de choro contemporâneo, “Besta Fera”, que intitulou seu álbum de inéditas lançado em 2019. A dicção barroca de Gregório se adapta perfeitamente à intenção de crítica moderna proposta por Macalé, em seu canto sincopado: “Todos somos ruins, todos perversos/ Só nos distingue o vício e a virtude/ De que uns são comensais, outros adversos”, declara Macalé antes de seu brinde final.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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