“Banzeiro Òkòtó”, de Eliane Brum, milita pela preservação da Amazônia

*por Raphael Vidigal

“Uma pintura da vida é salva do fracasso pela limpidez dos detalhes. Como um sonho, ela deve ser surpreendente, inegável, absurda e assustadora. Como um sonho, ela deve ser ridícula ou trágica, e, como um sonho, impiedosa e inevitável” Jacques Rancière

Para usar uma palavra que está na moda, o livro de Eliane Brum é, sobretudo, necessário. “Banzeiro Òkòtó” não esconde em nenhuma página ser primordialmente um ato de militância, mas não apenas isso. A escritora gaúcha almeja interferir na realidade, e reflete sobre os limites de sua atuação por meio da elaboração do pensamento que toma a forma verbal. Essa circunstância é também questionada. Afinal de contas, o povo, a etnia, a cultura que ela pretende resgatar do massacre – ou, ao menos, participar desse movimento – possuem maneiras muito diversas de exercer a sua presença no mundo. Eliane, que se compadece e se identifica com os oprimidos, tem assimilada, na descendência e na origem, a linguagem dos opressores. Mas, então, como escapar desse labirinto?

Eliane oferece a disposição ao que, para ela, é novo, embora ancestral e, numa certa medida, atemporal; oferece a disposição à transformação, à lenta conversão do senso comum em subversão. Para subverter a realidade, transgredi-la, é preciso se utilizar de outros parâmetros, apreender novos paradigmas. Nessa caminhada, ela não exclui as suas próprias contradições, não permite que elas a imobilizem e as torna mais um motivo de reflexão, questionamento e autoconhecimento. Como a linguagem é sua matéria-prima, ela começa por subverter a forma para banhá-la com um novo conteúdo. Nesse sentido, o movimento mais explícito é o de abolir a cronologia linear. Os capítulos se sucedem numericamente sem uma lógica matemática. O relato se fragmenta.

Essa atitude expande a complexidade do livro, cujo discurso, em si, é, não raro, direto, beirando a obviedade. Eliane não se faz de rogada na hora de sacrificar a estética em prol da mensagem, e quase não resiste a frases feitas. Se soa repetitiva é porque acredita na persuasão de viés panfletário. “Extinção em massa das espécies”, “emergência climática”, “ponto de não-retorno”, dentre outras, serão expressões recorrentes no livro. Ela também incorpora a linguagem neutra, como modo de reafirmação de sua conexão, não só com a contemporaneidade identitária, quanto com a disposição a renovar-se, como pessoa e linguagem, sendo ela a pessoa que, neste livro, chega até nós através da linguagem. Os seus relatos pessoais se misturam a fatos de interesse público.

Somos apresentados ao fim do casamento de Eliane com a mesma intimidade que ela introduz ao retratar a violência dos grileiros, do garimpo ilegal, dos desmatadores e de todo tipo de criminoso na região. Eliane, hoje, vive em Altamira, uma periferia no coração da Amazônia, que ela define como o centro do mundo – ou clama que olhemos desta maneira para a floresta devastada. A mudança da repórter para a cidade no interior do Pará acompanha essa rota de colisão na qual o país mergulhou a partir da construção da hidrelétrica de Belo Monte que, entre outras coisas, determinou o rompimento da então Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, com o governo Lula, após perder a queda de braço contra Dilma Rousseff, que foi chefe do Ministério de Minas e Energia e da Casa Civil.

Mas essa mudança drástica, nos alerta Eliane, foi vista pelos povos originários como continuidade de um projeto de destruição que os atinge desde a invasão destas terras pelos portugueses. Eliane se dispõe a mudar de lado, a inverter essa lógica, ainda que compreenda suas inegáveis limitações. Ela, uma mulher branca, neta de imigrantes europeus, crê que o núcleo da transformação passa por uma real assimilação da nossa cultura originária, indígena, preta, africana. Para isso, é preciso que esses povos recebam o lugar que lhes é direito – uma divisão fundamental de poder com os excluídos, e não pelo olhar da condescendência, mas de admiração por aqueles que detém o conhecimento. O seu argumento mais forte é o da inevitabilidade. Será isso ou a morte do planeta.

Eliane desiste da negociação e parte para o confronto. Para ela, não existe outra alternativa. Negociação entendida, aqui, em seu amplo aspecto. Já não há mais possibilidade de negociar sequer com a sua condição social de burguesa que, no conforto de um apartamento em São Paulo realiza a sua modificação do mundo através do trabalho intelectual distanciado, assimilado pela estrutura que denuncia. O confronto acontece também nesta dimensão imersiva, de se colocar no problema de forma tão demasiada como a que tomam as palavras, eliminando qualquer vestígio de distância entre forma e conteúdo. Com essa atitude, Eliane não abole as fronteiras, mas cria outras. Sendo uma gaúcha burguesa que renega essa condição, ela tampouco alcança organicamente o lugar do outro, apesar da disposição de esvaziar-se para que este a preencha. O seu lugar, então, é o de fresta: nem dentro nem fora; nesse ínterim, nessa intersecção.

Numa das passagens mais inspiradoras, a autora recupera as palavras da jovem ativista do clima Greta Thunberg. A sueca afirma que não se compadece com a esperança que os mais velhos – justamente aqueles que nos trouxeram a esse momento – depositam sobre suas costas frescas, mas que deseja deles somente o pânico. É com esse tom alarmante que Eliane preenche as páginas, balizada por estudos de campo e depoimentos de gente especializada, cientistas da melhor qualidade. A radicalização do discurso é acompanhada pela experiência. A aproximação dela com o fato que vivencia e narra não é feita pela demagogia que equipara uma experiência semanal à realidade de toda uma vida cotidiana. Essa postura incomum da escritora obviamente impacta o leitor de seu pungente livro.

Com uma rara ironia, ela divide conosco uma descoberta inusitada. Que as meninas suecas que protestam contra a devastação do planeta são uma espécie de reencarnação dos indígenas, povos originários de variadas etnias, quilombolas e ribeirinhos que se integraram e adaptaram àquele ambiente. Sem distender por completo essas relações, ela busca pontos de contato, pela necessidade de unir forças na preservação desse bem-comum. Eliane não chega exatamente a ser ingênua, ainda que esbanje coragem. Ela compreende perfeitamente bem os perigos a que está exposta, a intrincada teia política que determina essa realidade atroz, injusta e desumana, mas não se intimida, não cede ao medo. Essa atitude que ultrapassa o cinismo e a covardia é renovadora.

Eliane resgata a necessidade da utopia da justiça social, e insere, com ótica contemporânea, uma conclusão que Marx já havia compartilhado no século XIX. O capitalismo produz fundamentalmente esses males. É o motor e a fonte de sua essência. Não há saída dentro desse sistema. Além de apontar o problema, a escritora tateia soluções um tanto originais. Não aponta para o futurismo, mas para o quê, na tacanha visão de mundo eurocentrista, seria o primitivismo. É preciso, é impositivo e urgente, devido ao pânico necessário, estabelecer outra relação com o nosso meio ambiente que não seja mediada pela destruição em prol do progresso que, a olhos nus, produz desigualdade, morte, pobreza e ódio. A mesma toada prega tal renovação conceitual na qual, claro, está a linguagem…

O critério de um sistema em que a coisa, o objeto, o produto, o inanimado vale mais do que a pessoa, o ser que respira, a vida, é o de salientar as diferenças por meio da condição econômica. Logo, somos divididos entre ricos e pobres. Eliane argumenta que essa compleição não se fomenta para os povos da floresta e que um ribeirinho que planta e pesca o que come leva uma vida de luxo ali, mas se torna pobre quando assimilado pela lógica do capital. Por sinal, o avanço cultural do neoliberalismo realizou uma proeza inegável. Hoje ninguém mais se assusta com a defesa de um sistema que coloca o capital em posição de predominância em relação ao social, embora ainda não haja nenhum partido capitalista, com essa exacerbação no nome. Até a pornografia tem suas sutilezas. Eliane Brum nos movimenta para um caracol que se lança feito os rios.

Foto: Lilo Clareto/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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