Arthur Nogueira, gravado por Gal, lança parcerias com Takai, Zélia e Bastos

*por Raphael Vidigal

“vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia” Paulo Leminski

Ronaldo Bastos acompanha Arthur Nogueira, 32, desde a infância, passada em Belém do Pará, sua cidade natal. Ele guarda numa memória afetiva os versos e a melodia de “Cigarra”, parceria de Bastos com Milton Nascimento, feita sob medida para Simone, que a lançou no LP de mesmo nome, em 1978, e que acabou se convertendo em apelido da cantora: “Porque ainda é inverno em nosso coração/ Essa canção é para cantar/ Como a cigarra acende o verão”.

Agora, Nogueira se aproxima ainda mais de Bastos, um carioca “infiltrado” no Clube da Esquina, que se tornou um dos principais letristas do movimento musical sediado em Minas. Ano passado, de passagem por Ouro Preto, o paraense confessou sentir similaridades entre a cidade histórica e o local onde nasceu. “Por Linhas Tortas”, primeira parceria entre Nogueira e Bastos, encerra o projeto de cinco singles do jovem artista, que ganhou uma bolsa do governo do Pará para desenvolver o trabalho.

Já lançadas, “Pontal”, “Dessas Manhãs Sem Amor” e “A Propósito de Estrelas” trazem encontros com Fernanda Takai, Zélia Duncan e a reservada poeta portuguesa Adília Lopes. “Salvador” tem letra e melodia do anfitrião. Gravado por Gal Costa em 2015, com “Sem Medo Nem Esperança” (feita com Antonio Cicero), e que batizou o seu primeiro álbum, Nogueira se vale de um ensinamento do escritor irlandês Oscar Wilde para dizer que “o trabalho do poeta é para que as pessoas não se esqueçam de olhar as estrelas”. “Caso contrário, tudo é treva”.

Esse projeto gira muito em torno da palavra poética, com referências a poetas consagrados como Walt Whitman e Safo, além da contemporânea Adília Lopes. Qual a importância da poesia para a sua vida e a sua obra?
O fascínio pela poesia determinou as escolhas mais importantes da minha vida, como, por exemplo, fazer da música um meio de vida. Eu tinha por volta de 13 anos quando, mexendo na estante de LPs do meu pai, descobri a canção popular escrita por poetas, que é tão comum no Brasil. Nosso país rompeu as fronteiras entre a cultura erudita e a cultura popular, graças a poetas como Vinicius de Moraes, que se colocaram também a serviço da canção. Nesse sentido, posso dizer que foram os poetas que me chamaram para a música, e eu só faço música, até hoje, por causa deles.

Como a poesia pode nos auxiliar em tempos como os de agora?
A poesia, especialmente a poesia escrita, nunca teve grande capacidade de influir no mundo contemporâneo a ela. Porém, se não pode mudar o mundo concretamente, o sentido do poema é, como diz Antonio Cicero, permitir o acesso a novos mundos, a “outras dimensões do ser”. Nosso mundo se amplia quando a poesia nos faz vê-lo com outros olhos, com muitos olhos. É nesse sentido que ela pode nos auxiliar nesse momento difícil. Lembro da famosa frase de Oscar Wilde: “todos estamos na sarjeta, mas alguns de nós estão olhando para as estrelas”. O trabalho do poeta é exatamente para que as pessoas não se esqueçam de olhar as estrelas. Caso contrário, tudo é treva.

Quais pontos te aproximaram das cantoras Fernanda Takai e Zélia Duncan?
No ano passado, quando ganhei uma bolsa do governo do Pará para compor canções inéditas, fiquei a fim de voltar a trabalhar com música eletrônica, porém de modo diferente dos álbuns “Sem Medo Nem Esperança” (2015) e “Presente (Antonio Cicero 70)” (2016), que são mais experimentais. Apesar dos tempos sombrios, eu me sinto feliz com os caminhos que percorri com minha música até aqui, e queria que essa tranquilidade transparecesse nas canções novas. Fernanda e Zélia estão em meus ouvidos desde antes de eu me tornar um artista também. Além da admiração, convidei as duas porque são artistas que tocaram muito no rádio, que sabem muito sobre música pop e, portanto, são capazes de oferecer à minha música os tons mais suaves que eu procurava. Em ambos os casos, enviei as melodias para que elas me devolvessem com as letras.

O que significa compor à distância e virtualmente para você?
No geral, independentemente do contexto do isolamento social, a composição para mim funciona melhor assim, virtualmente. Sou tímido, tenho um processo criativo lento e, por isso, a ideia de estar diante de alguém, com essa tarefa de criar algo novo, é intimidadora. Geralmente, as canções surgem da seguinte forma: ou recebo uma melodia ou uma letra do parceiro e trabalho sozinho; ou envio uma melodia ou letra para o parceiro trabalhar sozinho. Depois que temos algo mais estruturado, pelo menos de um esboço, é mais confortável, se for o caso, marcar um encontro e prosseguir juntos.

Como foi produzir os últimos discos de Adriana Calcanhotto e Fafá de Belém?
Meus processos de produção musical com Fafá e Adriana foram bem diferentes entre si. Para o álbum “Humana” (2019), eu propus à Fafá que criássemos os arranjos coletivamente, a partir de encontros com uma banda fixa, de formação reduzida. A produção e a gravação consideraram o diálogo e o improviso, com o máximo de execuções ao vivo, deixando o sentimento e a voz dela fluírem tranquila e livremente no estúdio.

No caso da Adriana, trata-se de um álbum produzido em plena pandemia, sem a possibilidade de nos encontrarmos para tocar juntos. Por isso, formei um núcleo criativo com meus parceiros STRR e Leo Chaves, que assinam a coprodução de “Só” (2020). Eles não só atuaram como instrumentistas, mas também como engenheiros de som, organizando os projetos das faixas e pré-mixando todas as tracks que recebíamos dos músicos convidados.

O single “Salvador” aborda o homoerotismo. O que significa falar dessa temática no Brasil que elegeu Jair Bolsonaro e como avalia o momento político do país?
É um momento muito opressor. Felizmente, a inaptidão do governo acaba sendo nossa aliada, no sentido de que eles não têm competência ou sagacidade sequer para colocar seus planos em prática, como eu temi que pudessem fazer. O maior perigo é que os bárbaros, guiados pelos seus preconceitos, costumam apelar para a violência. Ainda assim, como diz a canção que eu fiz com o Antonio Cicero, “não tenho medo nem esperança”. Sempre vou lutar, de forma racional, para “que cada um cante o seu amor”, como já pregava o poeta romano Nemesiano no século III depois de Cristo. Abordar o homoerotismo é afirmar o direito à liberdade sexual. Por isso, quanto mais comum for a manifestação pública da nossa sexualidade agora, melhor.

De que maneira tem lidado com a quarentena e o que esses singles representam para você nesse momento?
Lidar com a quarentena é um desafio diário. Há muito mais perguntas do que respostas. Não saber, por exemplo, quando teremos uma vacina ou poderemos abraçar nossos amigos novamente, é por demais angustiante. Tento me manter produtivo em meu mundo de sonhos, para salvar e ser salvo pela arte. Durante o processo do álbum da Adriana (Calcanhotto), muitas vezes acordei pessimista, descrente de tudo, mas abrir meu e-mail e poder ouvir uma bela canção inédita dela, como “Corre o Munda”, me dava ânimo para continuar vivo. Espero que meus singles tenham esse papel para as pessoas também. É isso o que me motiva.

Na sua opinião, como o Pará está presente e interfere na sua arte?
De todas as maneiras, mesmo quando não faço referência direta a ele. O Pará e, especialmente, a minha cidade, Belém, estão em tudo o que faço, no centro do meu desenvolvimento pessoal, porque são o meu lugar, sou eu. Adriana me disse, inclusive, ter percebido que eu me tornei mais de Belém depois que fui morar em São Paulo. Fiquei emocionado e lembrei do Thomas Mann, grande escritor alemão, de quem sou fã. Na época da Segunda Guerra Mundial, quando foi perseguido pelos nazistas e se exilou nos Estados Unidos, Mann deu uma declaração contundente, que tem a ver com isso: “Onde eu estou, está a Alemanha”.

Há 30 anos morria Cazuza. Qual a principal influência que ele exerceu sobre você? Tem alguma canção favorita?
No ano passado, lancei um EP de voz e violão, chamado “Coragem de Poeta”. É um pequeno álbum de intérprete, em que releio autores importantes para mim. Entre eles, está o Cazuza. Durante minha adolescência, ele me inspirou não só para a música e a poesia, mas, também, para viver a liberdade e o prazer sem culpas. Talvez seja por isso que os artistas são tão perseguidos. Há uma luz inexplicável que poucas pessoas têm e transmitem ao mundo, fazendo a diferença de verdade, transformando sua história finita e falível em algo inacabável, tipo a verdadeira eternidade, tipo um maravilhoso deus.

O percurso do Cazuza pela vida foi tão especial que sua existência não acabou depois de sua morte. Ele está vivo entre nós, em sua música, através dos tempos. Isso é inspirador diante da demagogia reacionária e religiosa que nos assombra e ameaça as conquistas do Estado de direito. “Eles passarão, nós passarinho” (citação a frase do poeta gaúcho Mario Quintana). Não seria capaz de escolher uma só canção do Cazuza, mas “Eu Queria Ter Uma Bomba”, que gravei nesse EP, com certeza é uma das mais bonitas.

Fotos: Ana Alexandrino/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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