“Apocalipse nos Trópicos” foca política e religião com lente sentimentalista

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Os poetas são religiosos que não precisam de religião: os assombros deste mundo lhes são suficientes.” Rubem Alves

Que Petra Costa se exponha em seus filmes já não é mais surpresa. O artifício se tornou uma das marcas da diretora mineira. Em “Apocalipse nos Trópicos”, além da voz que narra, ela tem a própria figura exibida em determinado momento. É quando o deputado Cabo Daciolo, candidato a presidente em 2018 na esteira da deposição de Dilma Rousseff, entrega para a cineasta uma bíblia a fim de evangelizá-la. Ao longo de sua filmografia, Petra tenta equilibrar-se na corda-bamba que esticou para si própria entre personagem e narradora, o que fica ainda mais evidente no documentário em questão. Sem a pretensão de abarcar a totalidade do real, ela assume o ponto de vista.

Se a subjetividade a libera de uma pretensa imparcialidade, a estratégia ao mesmo tempo tende a interditar o diálogo. Sendo simpáticos à sua perspectiva estaremos acomodados e satisfeitos com o que ela mostra na tela; do contrário, tenderemos à sua recusa e negação. Seja como for, Petra tem um ponto a mostrar, e seu recorte se mostra bastante claro ao mesmo tempo em que ela embarca em reflexões acerca das próprias concepções e de como sua história de vida as moldaram, estimulando o espectador a compreender as diversas outras personagens que comparecem na tela pelo mesmo viés: somos todos obra daquilo que recebemos e de como filtramos as circunstâncias presentes em nossa vida. Pode parecer óbvio, mas, talvez justamente por isso, é o que precise ser revelado, mais do que dito. Esse é um deslize da diretora.

Não é incomum que a narração de Petra, ao invés de acrescentar, se torne apenas reiterativa, levando à redundância um filme que já aponta numa direção bem definida. Por mais que se mostre aberta e interessada em conhecer o crescente e cada vez mais “influente politicamente” universo dos evangélicos – em toda a sua diversidade, com múltiplas contradições –, a diretora não abre mão de sua ideologia. Ela está lá, intacta na tela, no ponto de vista crítico do qual Petra é incapaz de se livrar ao se aproximar das personagens colocando-se, hierarquicamente, em primeiro plano. Mais do que a voz, é dela o texto que conduz a trama, são suas as alusões de plasticidade poética. As calculadas pausas para o silêncio, a feminina e frágil voz, tudo adensa seu discurso.

E o que emerge do conjunto de palavras habilmente costuradas por Petra é o sentimentalismo. O contraponto mais aparente é com a inflamada retórica do pastor e dublê de celebridade Silas Malafaia, cuja agressividade nunca deixa de soar interesseira e manipuladora. No seu caso, ele é o personagem que se esconde atrás do personagem e que vende para as massas uma suposta “autenticidade”, valor também emprestado ao então deputado do baixo clero Jair Bolsonaro, este sim, ao contrário do Cabo Daciolo, alçado à Presidência da República em 2018 no bojo da prisão de Lula, e que surge na tela como um reles “boneco de ventríloquo” de Malafaia.

O que acontece, no entanto, é que as coadjuvantes do filme se revelam mais interessantes por um inegável caráter de novidade. Malafaia afirma e reafirma suas crenças fundamentalistas – claramente de sórdido interesse politiqueiro e econômico – tanto quanto Bolsonaro e sua orgulhosa inclinação à perversidade, assim como Lula mantém o discurso que o transformou em líder sindicalista e popular admirado pelo mundo e por aí vai. A contundência de determinadas falas não compensa o vazio da repetição. Estas são personagens de tal forma consolidadas no imaginário popular que mesmo quando Malafaia exalta Lula com o intuito de cobrar uma postura altiva de Bolsonaro não nos surpreendemos. Faz parte do script do pastor aparentar tal independência, como ser indomável que vaidosamente espuma de raiva para as lentes.

Mais curiosa é a mãe evangélica ludibriada por uma mentira fartamente espalhada nas redes, que decide votar em Bolsonaro por acreditar que Lula é do candomblé. A mesma mãe que incentiva a filha receosa a admitir que “ela é Lula”. A natural simpatia da criança ao líder petista nos diz algo sobre sua intuição infantil. Ademais, as imagens de pinturas renascentistas que Petra elege para ilustrar a determinação em conhecer os recônditos do pensamento neopentecostal em sua adesão ao capítulo do Apocalipse são menos impactantes. Seja porque a figuratividade recebe o contorno insistente da narratividade, seja porque tal escolha também acaba por soar bastante óbvia. Mesmo a inclusão do trecho de um filme de Pasolini acrescenta pouco ao todo. Ali, se abre mão da explicação direta, a citação dá a impressão de um eruditismo falho.

Ora, se boas intenções por si só configurassem o êxito de um filme, Petra estaria perdoada de tais pecadilhos, para utilizar um vocabulário caro às religiões de matriz cristã. Acontece que a decidida e proposital falta de distanciamento coloca a obra no colo do sentimentalismo, que, por fim, gera um discurso igualmente passional e emotivo. A crença na redenção da democracia, na proteção de suas vulnerabilidades por pessoas de senso prático e solidário não me parece menos moral que a de uma salvação por meio da purgação daqueles considerados maus e inimigos. Ao focar essa mistura, a bem dizer, a contaminação entre religião e política, Petra acaba por embaçar a lente com seu sentimentalismo. O choro comovido talvez seja menos eficiente do que a sã consciência de que o jogo pelo poder é duro, e requer armas igualmente potentes.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


O período de verificação do reCAPTCHA expirou. Por favor, recarregue a página.

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]