*por Raphael Vidigal
“O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.” Manuel Bandeira
Elis Regina chegou dando “um esporro estonteante” nos dois estranhos que estavam na porta da sua casa, um condomínio de luxo na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Um deles era Marcos Sacramento, 60, e, o outro, seu parceiro, Paulo Baiano. “Quem deu meu endereço?! Ninguém sabe que estou aqui, quero paz, quero me esconder!”, esbravejou a cantora. Repentinamente, em um “ataque ciclotímico, ela mudou de expressão e nos convidou para entrar e tomar um café”, relembra Sacramento. Num passe de mágica, o constrangimento cedeu lugar a um casual encontro matutino, com direito à “presença dos filhos pequenos de Elis”. A dupla havia conseguido localizar a estrela graças a “uma secretária maluca, desleixada”, que passou a informação a Baiano pelo telefone, “a única forma de comunicação à distância da época”, pontua o entrevistado.
Baiano e Sacramento se conheciam há cerca de um ano e alimentavam aspirações artísticas no campo do cinema e da música, inclusive compondo juntos. Jovens de 20 anos, eles foram assistir ao espetáculo “Saudades do Brasil”, que Elis estreou em 1980, e, “impactados com a beleza e loucura” que haviam presenciado decidiram, com a audácia dos iniciantes, “transformar o roteiro do show em um documentário”. “Não éramos ninguém, apenas garotos sonhadores”, observa Sacramento. Baiano furou os bloqueios da assessoria de imprensa e chegou aos camarins, onde apresentou sua ideia a Elis e César Camargo Mariano, na ocasião marido da anfitriã e diretor musical da empreitada. “Deram alguma esperança, mas devem ter pensado que era só maluquice”, supõe Sacramento. Em seguida, o casal sumiu e não retornou mais as ligações.
Encontro. Inconformado, Baiano deu um jeito de descobrir o paradeiro de Elis. Na entrada da residência, a empregada, desconfiada, avisou que ela havia saído com as crianças. Baiano resolveu escrever um bilhete, quando o furacão chegou. Já acomodados na sala de estar, eles presenciaram uma cena que nunca mais saiu da cabeça de Sacramento, e, que, vira e mexe, ele reconta aos amigos. “Ela começou a chorar e abrir o coração para duas pessoas que não conhecia. Disse que estava deprimida, triste, queria voltar para São Paulo, não gostava do Rio. Tinha se separado do César (Camargo Mariano) e estava desesperada porque, com o fim da temporada, não poderia mais encontrá-lo”. Elis acabara de se mudar e não sabia como contactá-lo. Diante da artista que mais idolatrava, Sacramento não teve dúvidas: jogou em sua mão as fichas de orelhão que tinha.
“Ela olhou meio sem entender, com um sorriso nervoso, continuou chorando e reclamando da vida”, diz. No entanto, dispostos a animá-la de qualquer maneira, os fãs não se deram por satisfeitos, e ofereceram-se para emplacar o carro novo de Elis, da fabricante nacional Gurgel. “Estava com a carteira de identidade dela na minha mão e fomos os dois ‘viajandões’ tentar colocar a placa em Botafogo. Claro que não deu certo. Depois de um tempo, ela deve ter se tocado da besteira que tinha feito ao deixar o carro na mão de dois malucos”, acredita Sacramento. No final das contas, “não se falou nada sobre o projeto do filme, e o ‘encontro bizarro’ se tornou um confessionário de Elis falando do mais profundo da alma dela”. Na despedida, todos prometeram manter contato, mas Elis morreria em janeiro de 1982, aos 36 anos, vítima de uma overdose de cocaína e álcool.
Fascínio. Agora, a intenção de Sacramento é verter a experiência em uma crônica, previamente batizada de “Projetos Todos Tolos Combinados”, versos pinçados de “Sentimental Eu Fico”, música de Renato Teixeira gravada por Elis em 1977. A finalidade do título é olhar com graça para aquelas aspirações juvenis que jamais se concretizaram. Essa história, que o “acompanha há quatro décadas”, deu prosseguimento a uma admiração que vinha de muito antes. As primeiras memórias musicais do cantor carioca, que acaba de completar 60 anos, são de “ficar parado em frente à TV em preto & branco para assistir a Elis, enquanto as outras crianças não ligavam muito”. “Aquilo me deixava siderado. Sempre quis ser artista, eu era moleque e fingia que a vassoura era um pedestal, minha brincadeira predileta era colocar as outras crianças de plateia”, revela.
A influência de Elis seria constante. Em 1978, a intérprete estreou o aclamado espetáculo “Transversal do Tempo”. Sacramento tinha 18 anos, trabalhava como office-boy, e prestigiou dez vezes a mesma apresentação. Foi a primeira vez que ele a fitou de perto, no palco, para além “dos discos e da televisão”. Ao cerrar da cortina, ele rapidamente corria até a bilheteria para garantir o ingresso da semana seguinte. “Pensava: ‘É isso que eu quero fazer, viver de música’”. A longa caminhada terá uma comemoração de aniversário. Nesta segunda (27) em que sopra velinhas, o cantor oferece um show inédito, gravado exclusivamente para as redes sociais e transmitido em seu canal no YouTube, às 21h. Foi uma opção para não ficar sujeito à instabilidade das lives e, também, passar o “chapéu virtual”. “Quem quiser, contribui. Não tem mínimo, nem máximo”, brinca.
Parcerias. No início da trajetória, Sacramento integrava o grupo Cão Sem Dono, que gravou um álbum em 1986, ao lado de Baiano, Bernardo Quadros e Paulo Roberto. “Éramos muito experimentais, undergrounds, doidos, estávamos ‘cagando’ solenemente para as convenções. Claro que não deu nada certo”, admite. “Era a década em que o chamado ‘Rock Brasil’ estava surgindo, com Cazuza, Barão Vermelho, um investimento forte, foi a consolidação do mercado fonográfico no país. A gente corria por fora, em um mundo paralelo. Nossa agenda era abrir show no Circo Voador para Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Itamar Assumpção, a turma da Vanguarda Paulista”, completa. Logo, ele foi convencido por um produtor da Funarte a abandonar aquela aventura para cantar samba e participar do show “Custódio Mesquita: Prazer em Conhecê-lo”.
Ao pisar o palco, teve a companhia de Marlene (1922-2014), eleita Rainha do Rádio, consecutivamente, em 1949 e 1950. “Ela ainda estava em grande forma, apesar de já ser uma veterana. Ficamos amigos até ela morrer. Tinha uma personalidade forte, mas, comigo, sempre foi muito maternal, me deu dicas. Eu era novinho e estava nervoso. Ela foi me deixando a vontade. Compartilhamos momentos a base de muito café e cigarro, no caso dela, e cerveja, no meu”, diz. Essa escola seria valiosa, a ponto de, em 1989, ele ser convocado a participar da novela “Kananga do Japão”, na Manchete, na pele de Orlando Silva, o “Cantor das Multidões”, e um de seus principais ídolos. “Orlando foi um divisor de águas, ouvi a vida inteira, primeiro, pela voz do meu pai, e, depois, direto na fonte”, conta. A outra referência de canto é Milton Nascimento. “Um fenômeno”, exalta.
Estilo. Em 1995, Sacramento decidiu alçar novo voo, com “Modernidade da Tradição”. O disco dava o pontapé em sua carreira solo em grande estilo, sendo até premiado pela revista francesa “Le Monde de La Musique”. Ali, ele cantava clássicos de Chico Buarque, Wilson Batista, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Silas de Oliveira, Assis Valente, Paulo César Pinheiro, Mauro Duarte, Paulinho da Viola, Caetano Veloso e Eduardo Dussek, ao longo de onze faixas de tirar o fôlego. A sugestão do repertório partira do poeta e compositor Sérgio Natureza. Maurício Carrilho tocava violão e, Marcos Suzano, percussão. O título entregava a pista de uma característica marcante na condução do intérprete: o olhar atento para a memória da canção popular, resgatada com o vigor da contemporaneidade. “Foi a reaproximação de um universo que já estava dentro de mim”, avalia o cantor.
Paralelamente, Sacramento desenvolveu uma forte veia cênica, que o levou a montagens como “É Com Esse Que Eu Vou!”, “Forrobodó”, “Ary Barroso: do Princípio ao Fim”, “A Cuíca do Laurindo” e “Puro Ney”, este último com Soraya Ravenle, com quem dividiu os vocais do irresistível álbum “Breque Moderno” (2010), idealizado pelo violonista Luís Filipe de Lima. “Para mim, cantar e estar no palco, mesmo como cantor, é também ser um pouco ator. Eu sou intérprete, gosto de pegar a música e ir para dentro”, afiança ele, que retorna a Elis e ao pioneirismo do espetáculo “Falso Brilhante”, de 1975. “Já tinha uma linguagem de musical, com encenações, cenários, trocas de figurinos. Poucos artistas faziam isso no showbiz”. Outro potencial que ele explora é o da comédia. Feita com Marcelo Caldi, “Bolero de Cinzas” é uma homenagem a Eduardo Dussek.
Influências. Presente em “Drago” (2019), seu mais recente disco, a música aposta numa narrativa divertida, entre o deboche e o nonsense: “Quando vi tava na cama de babydoll/ Não sei bem se era aurora ou pôr de sol”. “Bebi muito do humor do Dussek, da Maria Alcina, do Bezerra da Silva. Tem muita letra de crônica no samba”, aponta ele, ao citar bambas como Geraldo Pereira e Wilson Batista. “Autorretrato” (2017), o anterior álbum autoral, também investia em canções bem-humoradas, flertando com a ironia e a observação urbana, caso de “Na Rua”. “Gosto muito de andar a pé pela cidade, tanto de dia quanto à noite, é o meu meio de transporte predileto, sou um flâneur (expressão francesa para designar andarilho)”, declara. Essas inspirações desembocaram em lavras de canções que passeiam por diversos ritmos, do bolero à valsa, com muita MPB.
“Durante os afazeres domésticos lá em casa, meu pai e minha mãe viviam cantando o repertório do Jorge Veiga e da Dalva de Oliveira”, rememora. “Mãe”, do último lançamento fonográfico, é um tributo à matriarca nonagenária. As interpretações derramadas, líricas, chorosas do samba-canção que ditava a moda do período apresentaram ao garoto discursos pessimistas, sobre traições. Ele se lembra de um específico, que abordava o suicídio e, ao final, inseria um estampido de tiro. “O advento da bossa nova rompeu com essa tradição. Eu sempre ouvi muito Tom Jobim, João Gilberto, Edu Lobo. O disco ‘Urubu’ (1976), do Tom, eu ouvi até furar, com aquelas orquestrações mirabolantes do Claus Ogerman”, assinala. “Sou essa salada da bossa ao rock progressivo”. Habituado a fazer letras, Sacramento “perdeu o medo” e atualmente também cria melodias.
Tributo. “Drago” foi produzido com financiamento coletivo através da internet. Ao percorrer 35 anos de estrada, o compositor conseguiu patrocínio uma única vez, quando a turnê do CD “Memorável Samba” (2003), editado pela Biscoito Fino, contou com o apoio da Lei Rouanet. “Em relação ao que vemos por aí, foi um valor insignificante, mas, para mim, foi absurdamente maravilhoso poder viajar pelo Brasil e seguir na batalha do mercado alternativo”, afirma. Por falta desse tipo de aporte financeiro, “Aracy de Almeida: a Rainha dos Parangolés” (2017) optou por uma formação enxuta: voz e o violão de Luiz Flavio Alcofra. A sugestão do tributo partiu de ninguém menos que Hermínio Bello de Carvalho, produtor e compositor consagrado da música brasileira, que foi amigo de Aracy. Com a direção atenta e minuciosa, eles deram forma a um trabalho caprichado.
“A minha geração conheceu a Aracy como a jurada mal-humorada e rabugenta do programa do Silvio Santos, que dava zero para todo mundo. Era uma personagem que ela encarnava, mas a minha mãe sempre me dizia que ela tinha sido uma grande cantora”, destaca Sacramento. Em formato de medleys, como suítes arquitetadas por Hermínio, ele deu voz a clássicos do repertório da homenageada, responsável por resgatar do ostracismo a obra de Noel Rosa na década de 1950. Entre eles, estão “Triste Cuíca”, “Filosofia”, “Onde Está a Honestidade?”, “O Orvalho Vem Caindo” e outras preciosidades. Instado a eleger aquela de sua predileção, Sacramento hesita, mas arrisca “Louco (Ela É Seu Mundo)”, de Wilson Batista. “É um compositor que me fala muito. Esse é um samba clássico e eu fiquei muito satisfeito com o arranjo e a interpretação”.
Tempo. As glórias do passado parecem um retrato pálido diante da atual situação. Desde que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, em março, o país já registrou quase 90 mil óbitos. Em meio à crise sanitária, o presidente Jair Bolsonaro perdeu dois ministros da Saúde, cuja pasta é ocupada por um interino há praticamente três meses. “É lamentável que a gente não tenha ministro da Saúde. Estamos vivendo uma catástrofe política sem precedentes na história do Brasil. Não estou falando de direita ou esquerda, mas da performance desse governo que subiu ao poder com um discurso de acabar com o viés ideológico e tem sido o mais ideológico de todos. Temo muito pelo futuro pós-pandemia”, alerta o cantor. Ele considera que “uma crise econômica tenebrosa viria de qualquer forma, mas, com algum cuidado, ela poderia ser mais branda”.
“É um caos, o povo está desorientado. Poderíamos ter menos mortes, se as medidas adequadas tivessem sido tomadas. Como todo mundo, vivo a angústia da incerteza. Mesmo a comunidade científica, que tem se esforçado para prestar esclarecimentos, não sabe muito a respeito, esse vírus é uma novidade, ainda está sendo estudado. Um governo com o mínimo de seriedade teria deixado o ministro da área trabalhar”, desabafa. Apesar dos pesares, Sacramento não perde a disposição e encara com galhardia a passagem do tempo. Ele corre 10km todos os dias no Aterro do Flamengo, e, desde os 40 anos, parou de beber, fumar e largou todas as drogas. “Estou limpo, sóbrio, cuidando da saúde. Obviamente, minha visão não é a mesma, o grau dos óculos só aumenta, tenho vista cansada. Envelhecer é se dar conta que as coisas estão passando”, reflete.
“Espiritualmente e mentalmente”, ele entende que “tem cada vez menos tempo, agora é daqui para o fim”, pensamentos que o encontram quando ele deita a cabeça no travesseiro. “Até os 50, eu vivia uma certa ilusão, a ficha não tinha caído. Agora, finalmente, estou um coroa bacana, o tiozão”, graceja. Todavia, cautela, canja de galinha e aviso não fazem mal a ninguém: com sua voz elástica, ninguém duvide que Sacramento dê uma volta no tempo, e sambando.
Fotos: Mulato Bamba/Divulgação.