“o coração só constrói
decapitado
e mesmo então
os urubus
não comparecem;” Ana Cristina Cesar
Em Ana Cristina Cesar o impacto precede, muitas das vezes, a compreensão. A força da palavra, seu poder de síntese, a sonoridade que provoca quando colocada ali naquele espaço, o choque. E é possível dizer que é em Ana Cristina Cesar e não exatamente em sua poesia, em sua prosa, nas cartas que transformou em obras de arte. Ana pratica uma espécie de aproximação distante. De se entregar sem se revelar. “Não se confessa os próprios sentimentos”, alude em uma das tantas passagens em que a biografia, o trânsito entre a primeira e a terceira pessoa, o olhar ora matreiro, ora melancólico, esboçam uma tentativa de vida através das palavras, da literatura.
Do ponto de vista estrutural Ana visava a desarticulações de padrões, à impressão de uma estética moderna, solta, sub-reptícia, propositadamente maculada, viva, em constante transformação e longe dos vícios “literários”. Ana Cristina Cesar é o oposto da pompa, da literatice, e consegue conjugar no mesmo movimento rigor e audácia, elegância e despojamento. Essa convivência com a tradição pode ser constatada no uso de expressões populares e ditados nos escritos de Ana, aos quais ela condecora com uma nova roupagem ou as despe insolentemente. A presença da ruptura, da fragmentação, vão ao encontro da palavra mais “sentida” do que “pensada”.
Todas essas conclusões sobre o trabalho de Ana Cristina, no entanto, sustentam-se num fio frágil, tão frágil quanto foi sua vida, interrompida por ela mesma aos 31 anos de idade, ao pular do oitavo andar do apartamento onde morava. Ana somente ilude o espectador com a perspectiva da combustão descontrolada, quando na verdade mantém o tempo todo o cavalo sob seu comando. Seguindo o ensinamento de Mario Quintana, que afirmava ser necessário “escrever um poema mil vezes para se ter a impressão de que foi escrito pela primeira”; a escritora não dispensa o labor cerebral, minucioso, cheio de ironia, outra característica sua, das quais se utiliza para dar consistência e espessura às emoções que lhe invadem.
O estupor diante da vida ressoa em Ana Cristina pelo clamor à liberdade, numa malandragem melancólica, numa embocadura que se faz rígida e se faz moleca, seguindo seus instintos que são sucedidos pelas performances. A presença da sexualidade na obra de Ana Cristina Cesar se dá de forma ambígua, tanto no tratamento de gênero quanto na sensação que transmite. Seja como for, é uma sexualidade plena, à flor da pele, que repele a moral e os bons costumes. Outro fator que se repete é a procura por uma transcendência, os questionamentos existenciais que se esbarram, nada por acaso, com as migalhas do dia a dia. Nesse sentido nota-se a influência de João Cabral de Melo Neto. O universo de Ana é o da confissão de Caio Fernando Abreu, da melancolia de Sylvia Plath e do coração exposto em detalhes por Leonílson.
Raphael Vidigal
Fotos: Arquivo e Divulgação.